Publicado originalmente no site Expressão Sergipana, em 22 de setembro de 2017
Edvaldo Alves fala do seu livro sobre os ex-escravos libertos em Sergipe.
Por Erick Feitosa
O professor e pesquisador Edvaldo Alves de Souza Neto lançou
seu primeiro livro em agosto de 2017. Em entrevista ao portal Expressão
Sergipana, o historiador sergipano contou um pouco de sua trajetória e dos
principais pontos da sua obra. “Saindo das senzalas, mas não da história:
libertos em Sergipe no pós-abolição (1888-1900)” foi publicada pela Editora UFS
no formato e-book e está disponibilizada de modo gratuito pelo site da editora.
O livro é fruto de sua pesquisa no mestrado do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Sergipe (UFS), sob a
orientação do Prof. Petrônio Domingues. A obra relata a trajetória coletiva e
individual dos ex-escravos libertos e seus descendentes no cenário sergipano,
logo após a abolição da escravatura com a Lei Áurea no dia 13 de maio de 1888.
O escritor apresentou alguns motivos que lhe incentivaram a
escolher esse objeto de estudo e período histórico. “Como a maioria das
pesquisas históricas sobre a História e Cultura Afro-Brasileira em Sergipe se
encerram no ano de 1888, centrando-se no período da escravidão, quis evidenciar
que também é importante estudar os anos subsequentes à abolição; que os negros
“saíram das senzalas, mas não da história””, afirmou.
Um característica marcante do livro é o estudo específico
sobre os impactos do pós-abolição em Aracaju. Com isso, Edvaldo explica. “Como
tive um foco maior no cenário Aracajuano, percebi o quanto essa população
liberta foi fundamental para o crescimento da recém capital, Aracaju. Na época
da abolição, Aracaju havia completado três décadas de existência, cidade muito
jovem. E, sem sombra de dúvidas, a população africana e afrodescendente pintou
o seu modo de ser, pensar e agir nas ruas da cidade”, conclui.
Sobre como sua obra contribui para o fortalecimento da
identidade racial, Edvaldo aponta que “é de suma importância estudar os
desdobramentos da escravidão, primordial para impulsionar políticas públicas de
reparação, no entanto, é um erro gravíssimo achar que o negro só tem
importância na história enquanto escravo. Assim, as discussões do pós-abolição
possibilitam repensar a presença e a contribuição africana e afro-brasileira na
história do Brasil para além da escravidão, de modo a contribuir na luta contra
o racismo; longe de serem vítimas da história, os libertos e seus descendentes
foram sujeitos partícipes não só da nossa cultura, mas também das outras
esferas da sociedade brasileira”, apontou o historiador.
Confira a entrevista na íntegra:
Expressão Sergipana: Edvaldo, qual é sua história de vida?
Como você se tornou estudante de história? E como se desenvolveu sua formação
acadêmica até o lançamento do seu primeiro livro?
Edvaldo Alves: Antes de qualquer coisa, agradeço o espaço e
interesse do portal Expressão Sergipana por divulgar a pesquisa que acabo de
publicar. É muito importante o trabalho que vocês têm desempenhado na
divulgação do conhecimento. Bem, eu sou oriundo da escola pública e como muitos
dos meus colegas que optaram pelo magistério, tive bons professores de História
na minha formação. No antigo Colégio Estadual Gov. João Alves Filho (hoje
Centro de Excelência Professor José Carlos de Souza), onde estudei, gostava
muito das aulas da professora Josefa; eu ficava impressionado como ela
conseguia organizar as ideias com tamanha facilidade e isso me motivava
bastante. Também tive aulas em um cursinho preparatório com o professor Jorge
Marcos, outra fonte de inspiração. Então, desde cedo, eu já sabia o que
pretendia cursar. Fiz vestibular e consegui entrar na Universidade Federal de
Sergipe (UFS) no ano de 2009. O início foi um pouco complicado, porque eu
trabalhava à tarde como jovem aprendiz no Banco do Nordeste e ia para
universidade à noite; era uma rotina cansativa. Foi quando resolvi se
concentrar nos estudos e entrei no Programa de Educação Tutorial (PET) do
Departamento de História (DHI/UFS). O PET foi um divisor de águas na minha
formação acadêmica, onde passei a trabalhar e aprender com ótimos profissionais
como: o prof. Dilton Maynard, tutor do programa à época e que me ensinou (e até
hoje me ensina) muito; o prof. Carlos Liberato, com quem iniciei no universo da
pesquisa; o professor Itamar Freitas, meu orientador na pesquisa monográfica
que apresentei em 2014. Por questão de identidade, minha avó paterna era adepta
do Candomblé e meu bisavô foi ex-escravo, eu sempre me interessei pela temática
africana e afro-brasileira, enquanto negro, sempre quis saber sobre minha
história. A primeira pesquisa que desenvolvi foi sobre a imagem do negro na
historiografia sergipana sob orientação do prof. Carlos Liberato. Em seguida,
sob orientação do prof. Itamar Freitas, passei a analisar como a História e a
Cultura Afro-brasileira aparecia nas Propostas Curriculares Nacionais, uma
discussão mais voltada ao Ensino de História, tema da minha monografia. Foi
quando conheci o professor Petrônio Domingues, que tinha acabado de voltar de
um Pós-Doutorado nos EUA, e ele me apresentou esse campo do pós-abolição; o
quão importante e desafiador era pensar a história afro-brasileira para além do
período escravista. Eu fiquei encantado pelo tema, até então, nunca havia
parado para pensar nisso. Ele aceitou me orientar em uma pesquisa de mestrado
no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Sergipe (PROHIS) e
acabei investindo no tema, com o interesse em inserir o contexto sergipano
nessa discussão. Do resultado dessa pesquisa de mestrado, foi que originou o
livro. Nesse período, também pude fazer parte do projeto “O negro no
pós-abolição em Sergipe (1888-1900): trabalho, família e lazer” coordenado pelo
prof. Petrônio Domingues com o objetivo de desenvolver o campo de pesquisas
sobre o pós-abolição em Sergipe por meio da digitalização e divulgação de
fontes históricas salvaguardadas no Arquivo Geral do Judiciário do Estado de
Sergipe (AGJES). Tal projeto, além de mim e do prof. Petrônio, também contou
com a participação de outras duas pesquisadoras, Claudia Domingues e Selma Santos.
Expressão Sergipana: Em “Saindo das senzalas, mas não da
história: libertos em Sergipe no pós-abolição (1888-1900)”, porque você
escolheu esse objeto de estudo e período histórico?
Edvaldo Alves: Até a graduação, eu não conhecia nada do
pós-abolição. Como disse na resposta anterior, o primeiro a me apresentar essa
discussão no DHI/UFS foi o prof. Petrônio Domingues. A gente conversava muito
sobre o tema e, como ele já é uma referência brasileira nesse campo, tive a
sorte de dialogar e aprender com alguém extremamente qualificado. Ele me
apresentou várias pesquisas sobre o fim do cativeiro no Brasil e nas Américas,
momento em que aprendi sobre a situação dos libertos, das libertas
(ex-escravizados) e seus descendentes logo após a abolição da escravatura, ou
seja, no pós-abolição, que no Brasil, entendo ser a partir da Lei Áurea de 13
de maio de 1888. O meu interesse era estudar esse evento, não na perspectiva da
princesa Isabel, e sim na perspectiva dos beneficiados pela lei, por isso
passei a investigar como esses libertos buscavam, ao seu modo, se inserir na
sociedade da época. Pensei em começar a pesquisar já no imediato pós-abolição,
por isso iniciei no ano de 1888 até o fim do século XIX, em 1900. Como a
maioria das pesquisas históricas sobre a História e Cultura Afro-Brasileira em
Sergipe se encerram no ano de 1888, centrando-se no período da escravidão, quis
evidenciar que também é importante estudar os anos subsequentes à abolição; que
os negros “saíram das senzalas, mas não da história”.
Expressão Sergipana: O que o seu livro traz de novo para a
História de Sergipe?
Edvaldo Alves: Penso que o tema por si só já é algo novo
para historiografia sergipana. Todavia, podemos mencionar alguns pontos.
Durante muito tempo, acreditava-se que a situação dos afro-brasileiros nos anos
posteriores à escravidão, só poderia ser explicada por meio do entendimento do
período escravista. Deste modo, os interpretando por uma perspectiva analítica
diferente da deles próprios, fazia-se uma ligação quase que natural entre
escravidão e pós-abolição, e desse modo, justificava-se a posição inferior dos
africanos e afrodescendentes na sociedade pós-escravista por meio da
inadaptação desses sujeitos ao mundo dos livres. O fim da telenovela Sinhá Moça
(2006), da TV Globo, nos dá uma representação visual desse processo que acabou
se cristalizando no senso comum. O que vemos naquela cena final são
ex-escravizados sem planejamento algum, totalmente despreparados para a vida em
liberdade. Eles, carregando alguns poucos pertences ou apenas com a roupa do
corpo, saem em grande quantidade das fazendas em busca de um destino incerto,
momento em que somos tentados a despejar nas favelas e periferias brasileiras
essa parcela de migrantes. Como se essa tivesse sido a única realidade de todo
ex-escravizado no Brasil. Hoje, com a criação do campo de estudos do
pós-abolição, é possível perceber que a coisa não foi bem assim. O meu livro
ajuda a compreender esse momento histórico no caso sergipano. Eu me deparei na
documentação com libertos bastante estrategistas e que lutaram, ao seu modo,
pelos seus direitos, sejam eles no campo da habitação, do trabalho, do lazer,
no cenário político e na defesa da nova condição de livre que a lei lhe
garantia, “uma vez que já não eram mais escravos”. Assim, durante a pesquisa,
localizei alguns libertos que permaneceram trabalhando na antiga propriedade
onde eram escravos, desde que fossem firmados novos contratos de trabalho que
lhes garantissem uma remuneração considerada justa e que os distanciassem da antiga
condição escrava. Por exemplo, algumas libertas decidiram continuar trabalhando
na casa da sua antiga senhora no serviço doméstico, contanto que não fossem
obrigadas a pernoitar no local de trabalho porque isso as aproximava da sua
antiga condição escrava. Essa nova exigência das libertas, fez com que uma
ex-senhora manifestasse sua insatisfação na imprensa sergipana, já que, segunda
ela, se uma “mãe de família” quisesse beber um chá à noite, ela que levantasse
da cama e fizesse, uma vez que não poderia contar com os serviços domésticos
das libertas no período noturno, o que considerava um absurdo. Vê-se, ai, um
exemplo claro de como o 13 de maio de 1888 representou uma ruptura com as
antigas relações escravistas. Já outros libertos e libertas, entenderam que o
melhor a ser feito era se distanciar do antigo local de trabalho. Muitos
partiram das fazendas em busca de um novo futuro em Aracaju, cidade em
crescimento, ou em outras localidades; há ainda aqueles que saíram em busca de
parentes, uma vez que eles haviam se separado durante as vendas de cativos,
comum durante a escravidão. Ou seja, ao contrário do que a telenovela nos induz
a pensar, as estratégias assumidas por esses libertos no momento em que “o
cativeiro se acabou” foram extremamente diversas. Há também uma grande
incompreensão sobre os significados do 13 de maio que tento discutir no livro.
Para muitos, essa data foi uma farsa, fruto de uma decisão conservadora
oficializada nas linhas da princesa Isabel. É inegável que o projeto
abolicionista aprovado pela princesa, foi o mais conservador possível, no
entanto, o fato histórico não pode ser reduzido a esse aspecto. A experiência
dos beneficiados pela lei nos mostra outra possibilidade interpretativa. Ao
perceber esse evento na perspectiva dos libertos, vemos como ele foi bastante
festejado nos quatro cantos de Sergipe; de norte a sul, de leste a oeste. Por
um certo tempo, esse foi um dos eventos mais comemorados pela população liberta
sergipana. E a justificativa para tal, eram os ganhos proporcionados pela lei,
como os que já mencionamos anteriormente, a exemplo da possibilidade de migrar
sem a necessidade de prestar contas a um senhor, a definição de uma nova
jornada de trabalho sem a necessidade de pernoitar etc. Se a abolição foi fruto
de uma solução conservadora, é possível perceber algumas rupturas com o período
escravista, espaço onde os ex-escravizados atuaram em busca do reconhecimento
daquilo que eles entendiam ser seu por direito. Comemoraram não por serem
alienados, mas porque perceberam no plano do cotidiano que algo mudou para
melhor. Outro ponto importante que o livro traz, diz respeito a uma parte da
história de Aracaju que acabou sendo silenciada pela exaltação aos grandes
nomes como Inácio Joaquim Barbosa (presidente da província de Sergipe
responsável pela mudança da Capital) e Sebastião José Basílio Pirro (engenheiro
que projetou Aracaju). Como tive um foco maior no cenário Aracajuano, percebi o
quanto essa população liberta foi fundamental para o crescimento da recém
capital, Aracaju. Na época da abolição, Aracaju havia completado três décadas
de existência, cidade muito jovem. E, sem sombra de dúvidas, a população
africana e afrodescendente pintou o seu modo de ser, pensar e agir nas ruas da
cidade. Em vista disso, entendo que a população afro teve uma participação
decisiva na formação da cidade de Aracaju, seja expandindo os seus limites para
além da região central, na medida que chegavam novos migrantes das áreas
rurais; abastecendo o mercado central com produtos; ou até mesmo organizando
festividades, como os sambas espalhados pelas ruas da capital, uma forma de
lazer largamente utilizada pela sociedade da época. Gente como o liberto
Plácido Penna, proprietário de uma barraca de peixe ao lado da Ponte do
Imperador, que embora fosse bastante conhecido pela população Aracajuana do
século XIX que circulava pelas ruas do centro, acabou sendo esquecido pela
memória pública, pois não se vê ruas, praças ou prédios públicos do centro
aracajuano batizados em sua homenagem ou em homenagem à população
afro-sergipana.
Expressão Sergipana: Você consegue identificar como esse
processo dos libertos em Sergipe pós-abolição se diferenciou do processo nível
nacional?
Edvaldo Alves: Sim. Cada contexto histórico reserva
características que lhe são específicas e Sergipe não foge dessa regra. Sobre o
pós-abolição, até o início da década de 80, era comum se basear em pesquisas
elaboradas a partir da realidade do Rio de Janeiro e de São Paulo e, em
seguida, estender as conclusões dessas pesquisas para o restante do Brasil.
Então, se você quisesse saber como foi a situação do liberto em Sergipe,
bastava ler os trabalhos feitos para essas localidades que você solucionaria
esse problema. Era assim que os historiadores sergipanos até pouco tempo
faziam. Hoje, por meio do crescimento dos estudos sobre o pós-abolição, isso
não é mais possível. Se a gente comparar a realidade desses dois estados com
Sergipe, por exemplo, percebemos que em Sergipe, durante a substituição do
trabalho escravo para o trabalho livre, os proprietários sergipanos não
contaram com a mão de obra do imigrante, seja ele europeu ou asiático, como
ocorreram nessas duas localidades. Aqui, esses postos de trabalho antes
ocupados por escravos, passou a ser negociado com libertos que exigiam novas
condições.
Expressão Sergipana: Em que sua pesquisa contribui no
fortalecimento da identidade racial, diante da efervescência do debate na
atualidade?
Edvaldo Alves: Penso que o conhecimento histórico tem um
papel importante na formação das identidades, inclusive a racial. O primeiro
passo é lembrar para população brasileira que existe uma história do negro no
Brasil para além do período escravista. Sabemos que é de suma importância
estudar os desdobramentos da escravidão, primordial para impulsionar políticas
públicas de reparação, no entanto, é um erro gravíssimo achar que o negro só
tem importância na história enquanto escravo. Assim, as discussões do
pós-abolição possibilitam repensar a presença e a contribuição africana e
afro-brasileira na história do Brasil para além da escravidão, de modo a
contribuir na luta contra o racismo; longe de serem vítimas da história, os
libertos e seus descendentes foram sujeitos partícipes não só da nossa cultura,
mas também das outras esferas da sociedade brasileira. Se a escravidão foi uma
violência institucionalizada, no pós-abolição, não observamos, por parte do
Estado, políticas de inserção social dos libertos e seus descendentes, mas sim
políticas de repressão que condenaram as diferentes práticas sociais desse segmento
da sociedade, a exemplo das leis de vadiagem, da criminalização do samba, da
capoeira e da perseguição das religiões de matrizes africanas. Historicizar
esse processo, além de ser essencial no fortalecimento da identidade racial e
na promoção de políticas públicas para atender às demandas da população negra
historicamente estigmatizada e injustiçada, é construir uma importante
ferramenta de combate ao preconceito e a discriminação racial.
Texto e imagem reproduzidos do site: expressaosergipana.com.br