Publicado originalmente na Linha do Tempo do Perfil de
Walter Firmo no Facebook, em 15 de abril de 2020
Um olhar Sobre Bispo do Rosário
Por Walter Firmo
Convivendo com Bispo do Rosário, pude bem sentir a loucura
de perto, um estado, um manisfesto, tão absolutamente interior, que cheguei a
pensar pedir carona, naquela esteira interna, cuja classificação formatava um
homem monossilábico, ensimesmado em caverna aderente ao próprio ar que respirava.
Um ser cuja anatomia humana, mais lembrava um primata, de baixa estatura, meio
desengonçado, cujos pés, mantinham vagos sonhos dentro de uma Ursa Maior.
Camufladamente, na cabeça, um voador, mártir cuja vocação, era poder voar,
exilar-se daquela pequena caverna, dissimulada num apartamento quitinete;
acredito numa área pequena de trinta a quarenta metros quadrados, que para ele,
transfigurava-se em um apropriado cosmo particular, porto de infinitas viagens
siderais.
Foi assim que conheci um viajante tribal, transformado em
artesão, juntando vírgulas da sua solidão, dissolvidas nos sapatos, cordas, fitas,
miçangas; copos, pratos, pentes, garrafas, bugigangas estelares que, ---num
passe de mágica---o transladasse, incógnito aos espaços públicos , ruas,
jardins e avenidas, e com um alfabeto próprio escrevendo sua própria história;
nos degraus da sala, talvez quem sabe, derramadas sobre o vaso do banheiro, ao
defecando seus medos e angústias.
E, ao transpor, na minha consentida liberdade, a porta de
entrada que me separava dele, diante de mim, estático, como fosse um monumento
simbólico no delírio, crispado, caminhei a passos contidos a seu encontro, eu e
o repórter que me acompanhava atônito e amedrontado, José Castello, hoje,
porém, um feliz e consagrado escritor. O senhor de toda razão naquele pequeno
espaço, logo se arvorou, afinando sua voz pouca e trêmula, afirmando que todos
nós temos uma aura sobre as cabeças e, que, a de José era azul e a minha
marrom.
Nossa acompanhante nos deixou sozinhos, com aquela pessoa
tão indefesa quanto ao seu tamanho físico, mas postulado na grandeza do seu
trabalho, exposto de forma desorganizada, que pensamos estar em meio a uma
feira de retalhos sem ordem ou intensidade. Mas não, tudo estava para si, como
em seu aeroporto particular, inacessível, lacrado numa cápsula existencial,
totalmente exilado de tudo; porém, no aguardo de um além, que o introduzisse
vestido em seus mantos, voar nos painéis de madeira ou latão, com seus coadores
de cozinha, ---uma arca de Noé voadora---alguém que tinha de carregar neste
"barco", representação de todos entulhos do mundo, salvando a terra
no dia do se Juízo Final.
Eu, enquanto o repórter se equilibrava, no abismo do medo, em
conhecer nas minúcias quem "era aquele insano ou maluco", rodava
minha cabeça, tentando desvendar visualmente aquele grande recheio, de uma
laranja quadrada, portanto fotograficamente instigante, por seu mundo encantado
e todo um paraíso ali a ser codificado. O Castelo, se construía nas indagações
de" quando, aonde, como e porque", enquanto eu brotava na minha
cabeça, tratamentos que um coração sentido, amainava em imagens questões
aflitivas de estarmos pousados em cima de um lixo atômico, que explodia considerações
simbólicas, da arte que transforma o artista, por forças que ele não controla.
Minha argúcia, espiritualmente viva, se articulava como as braçadas de um
nadador prestes a se afogar, debatendo-se na pálpebra de olhares, pousando nos
objetos e no próprio indutor da questão: Arthur Bispo do Rosário.
Uma frase escrita na compostura física em nanquim, preto
sobre um bordado branco, alinhavava frases soltas que me chamaram atenção,
seguindo sua lógica e grafia, por exemplo: "22 de dezembro de 1938 acompanhado
por sete anjos em nuvens especiais forma esteira mim deixaram na casa do fundos
murrado rua São Clemente 301 Botafogo"; tudo assim mesmo literalmente sem
pontuação sem nada.
A luz no recinto era a de um "charuto aceso", mal
dava querer compor prosopopeias, ouvindo vozes ausentes, a querer iluminar
aquele arquétipo de ilusão, porque meus vélvias de asa 50, ---meus sais...meus
filmes---eram facilmente fulminados, no breu da cavernosa ambientação a que
estávamos sujeitos. Estava mesmo, isto sim, no mato e sem cachorro. Mas, ao
ouvir os "latidos" de um flash, que levara como sustentação, sem
nenhuma magia e legítima defesa ---"não me maltrates, Robson"---, foi
o que tivemos naquele espacial e consentidamente criativo ---, quando não se
tem cão caça-se com gato. Errei sim, manchei o meu nome, mas o que fazer
naquela situação precária, cuja total claridade era um elemento invasor na
tradução precária em que vivia nosso personagem; que envolvimento psicológico,
poderia untar sem desprezo, aquele personagem tão só, tão isoladamente perdido
no seu vão estelar, quando a submersão cósmica se aprazia em escuridões à meia
luz.
E, assim, dessa maneira, tive que expor ao flash e iluminar
a pessoa física do maestro ensandecido, deitado em seu "leito fúnebre,
travesseiro que o levaria aos céus"; e outras intimidades guardadas, sob a
poeira resignada, na sua interioridade dos objetos, flagrados agora na potência
de uma luminosidade emitida por um disco voador. Fiz mais algumas poucas fotos
naquele interior, mas a minha grande arma estava sob a luz solar, a residir lá
fora e, fomos nós acompanhados pela segurança carcerária daquela casa de
detenção, desenhar melhor postura de construção afetiva à causa.
O artista finalmente liberto, no seu aparato carnal, visto
pelas lentes do ávido fotógrafo, em traduzir em imagens, a aparição de um
artista composto na natureza, livre à luz do sol, num contra-luz transfigurado,
em que se traduzia corpo, alma e engenho. Sombras, espaços, silhuetas, que
acentuavam um espaço de liberdade, sob um carinhoso beijo de um brilho
vesperal.
Depois de três dias ensaiando a passagem na terra de Bispo
do Rosário, a pedido do então diretor de redação da sucursal no Rio da revista
Isto É, Aluizio Maranhão, a minha vida não foi mais mesma. Mas aprendi uma lição.A
loucura é uma fantasia. É sim. Existem, em nossa sociedade "tribos"
que se engravatam, roubam, matam, desonram, falseiam e, mesmo assim, vivem
soltos em total liberdade por aí.E outros, menos loucos e, certamente mais
simpáticos, os "malucos beleza" que estão internados e em observação,
numa eterna quarentena. Aprendi a saber honrar esses homens, tidos como
destituídos, "mentes insanas", respeitando os seus signos e os
rituais de suas transições, para sempre ocultas.
PS - A constelação luminosa deste fenomenal artista, homem
do povo, ex-marinheiro, Arthur Bispo do Rosário, fotografado nos jardins da
Colônia Juliano Moreira, em 1985, no bairro de Jacarepaguá. Ele vestido no seu
manto sagrado.
Gostaria também neste ensejo final desta crônica, render
minhas homenagens póstumas a Hugo Denizart, psiquiatra e fotógrafo, que já nos
deixou a alguns pares de anos, mas que foi o primeiro a fotografar e filmar o
passageiro cósmico e seu entulhos, Bispo do Rosário. Saudades de você Hugo,
gente fina.
Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Walter Firmo
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