terça-feira, 18 de março de 2025

A última lição do mestre José Abud

Legenda da foto: Doutor José Abud: com ele, morreu um pouco da humanidade - (Crédito da foto: reprodução com arte, de post no Facebook/Domingos Pascoal  e postada pelo blog, para ilustrar o presente artigo).

Artigo compartilhado do site JLPOLÍTICA, de 17 de março de 2025

A última lição do mestre José Abud
Por Déborah Pimentel *

"Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (Paulo Freire).

Falar sobre o Dr. José Abud é revisitar um tempo de aprendizado intenso e exigente, uma época em que a propedêutica era ensinada com rigor e paixão por aqueles que compreendiam que a Medicina não era apenas técnica, mas também arte.

Para os que passaram por seus ensinamentos, ele não era apenas um professor. Era um mestre que exigia o máximo, pois sabia que o exercício da Medicina não permite superficialidades.

Fui sua aluna nos tempos de faculdade, na disciplina que molda a base de um médico: a Propedêutica. Aprendi com ele que examinar um paciente vai além de verificar sintomas e sinais físicos; é compreender a história que aquele corpo conta, a sutileza dos detalhes que fazem a diferença no diagnóstico e no cuidado.

Os anos passaram e quando fui presidente da Academia Sergipana de Medicina a vida nos proporcionou um reencontro. Dessa vez, não mais como professor e aluna, mas como colegas na Sociedade Brasileira dos Médicos Escritores, onde contribuímos juntos para todas as edições publicadas, em todas as antologias. Entre elas, recordo com carinho o lançamento da primeira antologia Vida, no Museu da Gente.

Naquela noite especial, meu conto Vida, Morte e o Morrer encontrou nele um dos seus leitores mais exigentes e generosos. A narrativa, que descrevia uma professora de Ética Médica recebendo de um ex-aluno - agora seu médico assistente - a notícia delicada de que estava com câncer, tocou profundamente Abud.

Como geriatra, ele conhecia o peso das más notícias e, ao final da leitura, disse-me algo que me emocionou profundamente: passaria a usar o passo a passo da comunicação descrito no conto como referência para lidar com seus próprios pacientes.

Receber aquele reconhecimento de um mestre tão rigoroso e exigente foi um dos momentos mais gratificantes da minha vida. José Abud e José Augusto Bezerra foram, sem dúvida, os professores que mais desafiaram minha geração.

Suas notas eram conquistadas com suor, esforço e dedicação. Eu nunca me considerei a mais brilhante da turma, mas sempre fui disciplinada e estudiosa.

Entre os professores que marcaram minha jornada, Abud, com seu jeito durão, sempre me elogiava - primeiro nos bancos escolares, depois como colega. Décadas depois, reencontrá-lo e vê-lo reconhecer em meu texto um ensinamento aplicável na prática médica foi um momento que uniu nossas trajetórias de uma maneira inesperada e profundamente emocionante.

Dr. José Abud não era apenas um mestre da propedêutica. Ele era um mestre da humanidade. Exigia perfeição porque sabia que a vida de um paciente depende da excelência técnica, mas também do acolhimento, da escuta, da presença sensível do médico. Sua memória permanecerá viva em todos aqueles que tiveram a honra de aprender com ele, dentro e fora da sala de aula.

Hoje, escrevendo este texto, celebro o legado de um professor que não apenas ensinou a examinar um paciente, mas também a enxergá-lo em sua totalidade.

A Medicina se despede de um grande mestre, mas sua essência permanecerá em cada um de nós que tivemos o privilégio de ser tocados por sua sabedoria e generosidade. Como médicos, como professores e como seres humanos, seguimos construindo, aprendendo e ensinando.

Afinal, como disse Paulo Freire, ensinar é criar possibilidades. E José Abud fez isso com maestria. Como sua aluna e colega, carrego suas lições e, agora, também como professora, desejo seguir seu exemplo, deixando meu próprio legado. Que meu ensino, assim como o dele, inspire, transforme e prepare não apenas médicos, mas seres humanos capazes de enxergar além do óbvio.

* Articulista Déborah Pimentel - É médica, pesquisadora da saúde mental e psicanalista. 

Texto reproduzido do site: www jlpolitica com br