Foto reproduzida do Google e postada pelo blog, para ilustrar o presente artigo
Texto publicado originalmente no site do Portal INFONET, em 17 de março de 2010
Aracaju no meu viver
Por Odilon Macahdo (Blog Infonet)
Quando eu nasci, Aracaju estava vivendo a ressaca de uma
noite de festas. Comemorava-se a ascensão da nova constituição estadual,
nascida em 1947, em pleno regime de liberdades após o período autoritário de
Getúlio Vargas.
Eu nasci no número 192 da Rua de Pacatuba. Neste tempo minha
Rua era uma das mais destacadas artérias da cidade. Por ali passava tudo, de
procissão a enterro, desfile de bloco de carnaval, marcha de soldado, passeata
de estudante, sem falar que o leite vinha de carrocinha e o pão em cesto e
quentinho.
A Rua de Pacatuba era e continua limitada pelas praças
Fausto Cardoso e Camerino.
Na primeira, a Praça Fausto Cardoso, encontravam-se os
poderes legislativo e executivo de Sergipe; o governo no Palácio Olímpio Campos
e a Assembléia no Palácio Fausto Cardoso. Hoje estes palácios ali estão,
conservando o nome e sem mudança de feitio, mas exibindo des-feitio humano, de
rastro e degradação, dizendo somente o que foi, o que não é nada por sinal,
como bem dizia o poeta que não amava a pegada marcada, por só pesada.
Mas a Praça dos Palácios também exibia dois grandes hotéis,
o de Rubina e o Sul Americano, ocupando duas esquinas, e um casario rasteiro,
espaço que continha uma sorveteria Aurora de lembrança fugaz, algumas
repartições que não existem mais, restando por persistentes apenas somente os
prédios do arquivo e/ou biblioteca pública, e a sede da Delegacia Fiscal
Federal.
No mais tudo foi derrubado, surgindo os cinqüentenários
Edifícios Walter Franco, São Carlos e do Cine Pálace, então o melhor cinema da
cidade, e em tempos mais recentes a prediação do Poder Judiciário, o Fórum
Tobias Barreto, e da nova Assembléia Legislativa no Palácio João Alves Filho,
bem como grandes espaços vazios usados como abrigo e estacionamento de automóveis.
Se a Praça Fausto Cardoso era vibrante e importante, a Praça
Camerino era tranqüila e silenciosa exibindo uma arbórea extensão residencial,
e um calçadão excelente para os volteios de bicicleta, centrada com a estátua
de Sílvio Romero, livro à mão e de costas ao rio, contemplando o lado mais
aristocrático da Praça e seu casario.
A Praça Fausto Cardoso de meu tempo de menino era cortada de
jardins num colorido de flores, verdadeiro convite para o deleite das tardes e
noitinhas à brisa vinda do Rio Sergipe, acolhedora e amena.
Neste tempo as águas estuarinas do Sergipe por límpidas e
convidativas, recebiam levas de banhistas à sua margem direita nas manhãs
ensolaradas. Margem que era e continua nossa, enquanto do outro lado a paisagem
exibia o longínquo o colar coqueiral da ilha de Santa Luzia. Uma distância
maior, porque nesse tempo ainda não existia a canoa motorizada de Xeba, e a
travessia se fazia lenta ao sabor da correnteza com velas ao vento, em pirogas
preguiçosas e jangadas perigosas.
Vejo-me criança à margem do rio Sergipe na cacunda de meu
pai. Seria um dia de domingo talvez, porque eram muitos os banhistas no seu
leito. Havia inclusive um trampolim nas imediações do Colégio do Salvador, ou
mais além, acessível somente aos bons nadadores que os havia bastante.
Alguns desses nadantes atravessavam o rio a nado, como Zé
Peixe e seus irmãos, raça anfíbia que se perpetuou como história viva e que
ainda permanece conosco, em braçadas mais ousadas, abraçando ainda o doce rio
salgado, hoje menos belo, por maculado.
Porque o Rio Sergipe sempre osculou salgadamente a Rua da
Frente da cidade, quer por cota rala e fundura rasa frente ao mar, quer porque
o subsolo sergipano é montado em farta camada salina; os sais evaporitos que
seriam a grande esperança do Estado.
E o estuário era tão salgado que alguns, por desvio ou pouco
avio, o chamavam em desapego de “a maré” , quando se lhe pescavam muitos siris
de isca e jereré. Mas que hoje restou pior, virando caudal esgoto da cidade que
lhe amou em pequenez.
Um vício da cidade e do bicho homem que em devolvendo o
beijo amoroso, no rio resolveu espalhar e emporcalhar com a própria escumalha,
em dejeção e excremento.
Isso desde o meu tempo de menino, só para historiar a
evolução fecal de coliforme partindo de eras antanhas das “fábricas de cocô”,
como assim eram apelidadas as deficientes e mal afamadas estações elevatórias
de efluentes, e que eram em número de três; a primeira localizada no oitão da
alfândega, ao lado do palácio Serigy e das suas esféricas bolas de cimento
armado, a segunda na travessa que prenunciava a larga Avenida do Barão do
Maroim, e a terceira no conjunto mais além da fundição, junto ao Cotinguiba
Clube ou ao Sergipe seu irmão, nas regatas e no futebol.
Hoje o rio é quase cloaca, um impeditivo para as disputas de
regatas e os demais esportes náuticos. E os governos se sucedem em multivariada
ideologia, todos bostando no rio. Uns defecando escondidos, outros obrando
abertamente, em pouca vergonha ou envergonhados, mas todos cagando no rio.
Uma cagação bem ampliada, porque a cidade no meu tempo de
menino era pequena e limitada, que chegava a ser contida por linhas de bondes
decadentes, como traços limitantes dos contornos citadinos. Tempo em que a
fossa estuarina não se fazia visível como agora, e era agradável os passeios de
bonde que me pareciam cômodos e eficientes.
Relembro estes passeios acompanhados de minha Nanan, a nossa
cozinheira, segunda mãe que tivera, em carinhos e atenção, com o bonde seguindo
uma linha do centro ao sul pela Rua de Itabaiana , salvo engano, depois virando
na Avenida Augusto Maynard, estendendo-se em demanda da Rua da Frente, a pouco
lembrada Ivo do Prado, depois atingindo a o Bairro Industrial e chegando até o
sopé da ladeira do Santo Antônio.
Mas se o rio transmudou em cloaca os bondes foram logo
aposentados, sendo-lhes retirados os trilhos em desuso exílio de sucata e ferro
velho, igual ao relógio de quatro faces, que nunca exibira exatidão uníssona,
bem posto e bem centrado na pavimentação a paralelepípedos entre o jardim da
retreta dominical e o entre – vão dos palácios executivos e legislativos, local
onde se implantou uma herma do Almirante Barroso junto ao primeiro e último
mictório público.
Mijadouro que não mais existe, mas que por uso perfunctório
separava a grande tragédia política da cidade; Fausto não mirava Olímpio, e
este mesmo que o quisesse tinha na frente um panteão miccional a lhe cobrir o
empenho de uma possível mirada fatal.
Voltando agora a esta sequencia de praças chegávamos à sede
matriz da igreja catedral, cercada por um belíssimo parque zoológico com
direito a aquário, sinuoso leito de canal, repleto de peixes e alevinos,
despertando nos meninos o ludo e a inspiração, com direito a araras esganiçadas
em farto viveiro de pássaro, capivaras, cotias, caititus e outros roedores, sem
falar numa onça que ficava por detrás da igreja, e outros animais como macacos
e papagaios, com direito a sabão de macaco, uma frutinha espumosa de fedor
empesteante que caia das árvores junto a muitos oitis amarelinhos, todos
fustigados pelo lento e pegajoso andar do bicho preguiça,
Assim era Aracaju, com o Parque Teófilo Dantas engalanado
para as feirinhas de fim de ano, onde o carrossel do negro Tobias reinava ao
centro em apitos de corridas.
Parque de muitos brinquedos. Dos barcos puxados a corda, aos
carrosséis aviões; dos chuveiros e rodas gigantes, das rifas e dos tiros ao
alvo em espingardas de ar comprimido, pescarias de prenda e laçadas em jogo de
argola, sem falar da série de roletas nos jogos par ou impar, vermelho ou
negro, com fichas e placas coloridas faiscando de luzes em sons atraentes de
promessas.
E porque não falar dos picolés da Yara e do São José, e do
sorvete da Cinelândia, preenchidos na casquinha às colheradas? Ah, que saudade
do big-bom e do picolé vitaminado da Yara, enrolados cuidadosamente em papeis
sedosos! Que dizer também do cachorro quente de Seu João, inigualável? Um pão
Jacó apenas, preenchido com carne frita com batatas?
Que dizer das ruas calmas de pouca insegurança, tempo em que
os automóveis vinham e voltavam pela mesma via sem contramão, universo de
veículos contado a dedos, com as placas enumeradas segundo um status de
importância tola, mas social?
Que dizer de outro tempo, onde já maior eu percorria a
cidade nos pedais de uma bicicleta, sem vencer as suaves ladeiras do Santo
Antônio e as da Rua de Laranjeiras, terríveis, sobretudo a de sentido oeste
leste. Tempo em que a cidade se extinguia nos areais suíços do oratório Dom
Bosco e de Bebé, nos apecuns alagados junto ao fundo da Igreja e do Colégio São
José, justo na Praça Pinheiro Machado onde Tobias Barreto imperava solitário e
esquecido, e do Aribé bem longínquo, cedendo o próprio nome a um Siqueira
Campos de descabida homenagem, sem falar da Tebaida, do Carro Quebrado e da
terrível estrada Timoteana que desapareceram e foram perdidos…
Falar do Aracaju de Santo Doutor, de Escarrate e do Moleque
Namorador, que saiam xingando e ameaçando surrar de cacete os meninos que os
provocavam. Aracaju de Maria Inocentinha, Sá Maria dos Cachorros e de tantos
loucos e pedintes. E de tantas que se vendiam nos prostíbulos do Vaticano, o
nosso mercado em cópia espúria de Bramante.
Aracaju de ancoradouro estreito onde os parcos navios
vencendo a estreita barra aportavam à ponte do Lima, o principal trapiche
portuário. Sergipe que dizia querer um porto para firmar o Estado em soberania.
E que depois o porto chegou e muito pouco vingou.
Aracaju de praias distantes como Atalaia Velha, que era uma
viagem para lá chegar, vencendo uma ponte que desabou, e Atalaia Nova, esta bem
mais distante ainda, lá do outro lado do Rio Sergipe, difícil de atravessar,
onde o sonho de uma ponte era impossível. E sem falar do Mosqueiro de
impossível acesso.
Aracaju da praia formosa; de uma balneabilidade lodosa e
duvidosa, recebendo águas palustres pelos canais das quatro bocas, onde o banho
era vertido por bueiros traiçoeiros.
Aracaju heróica e rebelde exibindo coragem e altivez
brandindo armas nos movimentos tenentistas do audaz 13 de Julho, hoje mais
esquecido que exaltado.
Aracaju cidade projetada em tabuleiro de xadrez, segundo a
concepção do Engenheiro Pirro e conforme a ousadia de Inácio Barbosa e de João
Gomes de Mello, o Barão de Maroim. Mas que depois perdendo o traço e seu
compasso, rejeitou a regra e a simetria, preferindo o caos como engenharia. Um
pecado recorrente com a prediação teimando em avançar no passeio do público e
no espaço urbano das ruas
Aracaju, Cajueiro de Papagaios, no dizer de muitos e de
Garcia Moreno, em seu livro de crônicas assim nomeado.
Aracaju de tantas saudades e encantos. Aracaju cantada em
muitos versos e em muitos hinos, como os de Antônio Feijó, Freire Ribeiro e
Alfeu Meneses (Hino do Centenário de Aracaju), que poucos cantam por não mais
conhecerem o seu refrão, e outros como José Gentil Leite (Hino de
Sesquicentenário de Aracaju), Leozírio Guimarães (Aracaju), Antônio Garcia
(Aracaju, uma estrela), Cláudio Miguel (Cheiro da Terra), Antônio Vilela
(Atalaia), Hugo Costa (Paisagem de Aracaju), e tantos outros bem ou menos
recitados...
E outros cantos a Aracaju de autoria desconhecida, como a
cantata infantil que apresento por final, sem som e sem visual, só por
lembrança da minha Tereza menina, neste dia sorridente do 155º aniversário da
cidade Capital do meu viver:
Aqui em baixo deste céu azul
Vive coberta pela mão divina
Neste torrão tu és de norte a sul
A linda e bela cidade menina.
O Cotinguiba a beijar-te a fronte,
Tão docemente com carinhos mil.
Ali também o coqueiral defronte
Ama e protege a caçulinha do Brasil
Aracaju, tão pequenina!
Tua beleza encanta a toda a gente
Quem a olhar-te fica enamorado,
E o coração apaixonado sente
Lindo cenário de beleza,
Beleza rara deste céu primaveril.
Aracaju presente que Papai do Céu
Ofereceu para o orgulho do Brasil.
Texto reproduzido do site: infonet.com.br/blogs
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