Artigo compartilhado do site ROACONTECE, de 4 de outubro de 2025
Bairro São José: Onde o Silêncio do Mangue se Transformou em Memória
Por Emanuel Rocha*
Memórias de um bairro que cresceu sobre águas perdidas, onde fé, esporte, ciência e cultura se entrelaçam.
Nas semanas anteriores, navegamos pelas ruas do América e do Siqueira Campos, sentindo o pulsar de suas memórias e entendendo como cada bairro traça sua própria narrativa dentro do coração de Aracaju. Hoje, no São José, seguimos o mesmo fio de histórias, descobrindo como passado e presente se encontram nas margens de rios, praças e vielas, compondo a poesia viva da cidade.
Mais que um simples endereço na geografia de Aracaju, o bairro São José nasceu entre águas e memórias, onde o passado e o presente se encontram. Sua história começou com a união de duas localidades: a Fundição, situada ao sul do Centro da cidade, margeando o Rio Sergipe, onde funcionavam o depósito de inflamáveis e a sede dos primeiros clubes de regatas da cidade, o Cotinguiba Esporte Clube, o Clube Sportivo Sergipe, ambos fundados em 1909, e o Iate Clube de Aracaju, de 1953. E também o Bariri, área pantanosa nas proximidades do Carro Quebrado, atual Salgado Filho, com riachos que precisaram ser aterrados e canalizados. Hoje, essa região compreende o entorno da Paróquia São José e do Hospital São Lucas. Para que o bairro pudesse florescer, foi preciso silenciar o mangue. Ecossistemas inteiros foram destruídos, a água e a lama transformadas em ruas, praças e casarões. A beleza urbana custou caro à natureza, e o silêncio do mangue ainda ecoa entre as construções que hoje dominam a paisagem.
No coração espiritual do bairro está a Paróquia de São José, criada em 1924. Seus sinos marcaram casamentos, batizados, despedidas e esperanças. Em 11 de julho de 2023, o templo foi elevado a Santuário Arquidiocesano São José, celebrando em 2024 o centenário de sua fundação. Hoje, o santuário permanece como guardião da fé e da memória de um bairro que transformou águas em pedra e silêncio em oração.
Entre as joias do bairro floresceu o Cotinguiba Esporte Clube, fundado em 1909. Antes do futebol, veio o remo, esporte que marcou sua estreia e lhe deu supremacia. Com 38 conquistas estaduais, sendo dez consecutivas, o Cotinguiba desenhou nas águas do Sergipe a coragem e o ritmo que o eternizariam. O futebol chegou depois, e com ele as cores azul e branco, eternizadas nas conquistas de 1918, 1920, 1923, 1936 e 1942. Desde a primeira decisão estadual, o clube rivalizou com o Sergipe, conquistando corações e deixando um legado inesquecível.
O bairro São José é também polo de ciência, cultura, espiritualidade e cidadania. O ITPS, criado em 27 de junho de 1923 como Instituto de Química Industrial e transformado em 1948 em Instituto de Tecnologia e Pesquisa, abriga laboratórios de referência e o Museu de Química, fundado em 2006. O Instituto Parreiras Horta, criado através da Lei n° 836 de 14 de novembro de 1922, no governo de Maurício Graccho Cardoso, foi inaugurado em 5 de maio de 1924. Teve como primeiro dirigente o médico Dr. Paulo Parreiras Horta, que permaneceu à frente da instituição até 8 de dezembro de 1924. À época, sua missão era o preparo e a distribuição das vacinas antivaríola e antirrábica. Com o passar dos anos, o instituto expandiu suas atribuições, agregando exames laboratoriais que marcaram a consolidação da medicina científica em Sergipe.
No campo da cultura, o Teatro Atheneu, o mais antigo em atividade no Estado, acolheu gerações de artistas sergipanos e nacionais, tornando-se espaço de formação e memória da arte local. Já a Associação Atlética de Sergipe, fundada em 24 de maio de 1925, foi palco de grandes gritos de carnaval, competições esportivas realizadas nas quadras de futebol ou na piscina olímpica, além de aniversários, casamentos, gincanas escolares e momentos de lazer que marcaram a vida social sergipana.
O São José também recebeu importantes instituições. A sede do IPHAN esteve no bairro temporariamente, enquanto o IML funcionou ali por décadas, guardando registros de dor e lembrança que atravessaram gerações. É ainda sede da Secretaria de Segurança do Estado e do Centro de Treinamento da Seleção Brasileira de Ginástica Rítmica, reforçando a relevância contemporânea do bairro.
Na dimensão espiritual, além da força católica irradiada pelo Santuário São José, encontra-se a União Espírita Sergipana, fundada em 9 de setembro de 1930, onde Divaldo Franco realizou sua primeira palestra pública, marco do espiritismo em Sergipe e no Brasil.
No campo da memória arquitetônica, destaca-se o Casarão dos Rollemberg, construído em 1919 com forte influência do Art Nouveau. Foi residência de uma das famílias políticas mais influentes de Sergipe. Tombado como patrimônio estadual, hoje abriga o Memorial da Advocacia Sergipana, oferecendo exposições, palestras e visitas educativas, revelando o diálogo entre a arquitetura local e os padrões europeus, bem como a história da elite aracajuana do século XX.
Também de grande importância histórica está a Capitania dos Portos de Sergipe. A primeira foi criada em 12 de janeiro de 1848 pelo Decreto nº 549 do Império, extinta em 1850 e restabelecida definitivamente em 18 de outubro de 1854, pelo Decreto Imperial nº 1861. Desde então, mantém existência contínua, simbolizando a soberania marítima e a relevância estratégica de Sergipe nas rotas do Atlântico.
No campo educacional, o bairro consolidou-se como um verdadeiro celeiro de formação. O Colégio Atheneu Sergipense, o Colégio Arquidiocesano, o Colégio Patrocínio e o Colégio Dom Luciano formaram gerações de aracajuanos, unindo tradição e excelência. A essa herança soma-se o pioneirismo do Jardim de Infância Augusto Maynard, inaugurado em março de 1932 como Casa da Criança, na gestão do interventor federal Augusto Maynard. A instituição foi idealizada pelas jovens normalistas Helena Abud, Miran Santos e Raquel Cortez, que levaram a proposta ao interventor e mobilizaram recursos para concretizá-la. Inspirada nos princípios da Escola Nova, inovou ao unir pedagogia e arquitetura em um projeto moderno para a época. Em 1942, passou a se chamar oficialmente Jardim de Infância Augusto Maynard, permanecendo como símbolo de renovação educativa e esperança para a infância em Aracaju.
A urbanização do bairro avançou entre as décadas de 1950 e 1970. Praças e ruas calçadas se multiplicaram, abrindo espaço para o Estádio Lourival Baptista, o Batistão, e consolidando o bairro como polo de serviços médicos. Médicos, advogados e arquitetos migraram para bairros mais distantes, e antigas residências cederam lugar a consultórios, escritórios e hospitais. Ainda assim, núcleos residenciais permanecem, com idosos guardando memórias e histórias como verdadeiros guardiões do tempo.
Hoje, o São José é um bairro de contradições harmoniosas, memória e progresso, poesia e vida cotidiana. O mangue silenciado, as remadas do Cotinguiba, os carnavais da Atlética, os palcos do Atheneu, os laboratórios do ITPS, os sinos do Santuário, a força da União Espírita e os bancos escolares do Maynard e dos colégios históricos se entrelaçam, guardando em cada rua, praça e edifício a história viva de Aracaju.
Quando a noite cai, o bairro revela sua face mais serena. Entre o concreto e o asfalto, ainda ecoam as águas, as vozes, os passos e os sonhos. O São José permanece como guardião da memória, testemunha do tempo e poesia viva de uma cidade que cresceu sobre suas próprias escolhas.
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* Emanuel Rocha é historiador, coautor dos livros Bacias Hidrográficas de Sergipe, Unidades de Conservação de Sergipe e Bairro América: A saga de uma comunidade. Também atua como repórter fotográfico e poeta popular.
Texto reproduzido do site: roacontece com br
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