Artigo compartilhado do site ROACONTECE, de 26 de outubro de 2025
O Peixe Homem das Águas de Sergipe, Nadando Entre Sonhos e Memórias
Por Emanuel Rocha*
Nas águas sergipanas, o homem-peixe deixou sua marca de luz, coragem e lembranças que desafiam o tempo
Na Semana da Sergipanidade, nada melhor que recordar a história de um homem que fez das águas o próprio lar e da coragem a sua bandeira. Zé Peixe, o herói das marés sergipanas, nadava entre o real e o lendário, desafiando ondas, correntes e distâncias com a leveza de quem nasceu para servir. Filho do rio e do vento, tornou-se símbolo de bravura e simplicidade, um nome que atravessou o tempo carregando a essência do povo de Sergipe: forte, destemido e profundamente ligado à terra e ao mar.
Nas margens do Rio Sergipe, nasceu um menino que parecia feito do próprio mar. Cada onda lhe sussurrava segredos, cada correnteza guiava seus passos, e cada mergulho se tornava uma lição de coragem. Chamaram-no Zé Peixe, filho das águas e guardião das marés, que desde cedo aprendeu que a vida se mede em braçadas e que a verdadeira grandeza se revela na harmonia entre o homem e o rio que o viu crescer
Em 1927, Aracaju respirava ao ritmo do Rio Sergipe. As águas refletiam o céu e carregavam histórias antigas, enquanto o vento trazia o cheiro do mar e o murmúrio das marés embalava a cidade. As ruas ainda eram de barro, as casas baixas, e o cotidiano se desenrolava entre mercados, barcos e redes estendidas ao sol. O rio corria livre, invadia cais e margens e parecia guardar segredos que só quem nascia à sua beira podia ouvir
Filho de Dona Vectúria, professora de matemática, e de Seu Nicanor Ribeiro Nunes , funcionário público, José Martins Ribeiro Nunes, o futuro Zé Peixe, era o terceiro de seis irmãos, cercado pelo riso e pelo burburinho da casa familiar. Entre o sol que brilhava sobre a água e o reflexo das nuvens correndo pela correnteza, ele aprendeu cedo a escutar o rio. Cada onda trazia uma lição, cada maré um segredo e cada barco, um convite ao sonho. Assim, de mãos pequenas e pés molhados, crescia Zé Peixe, menino do rio, alma moldada pela água, pela brisa e pelo infinito movimento das correntes que passavam diante de sua casa
Zezinho iniciou seus estudos no Jardim de Infância Augusto Maynard, fez o primário no colégio de Dona Glorianha Chaves, cursou o ginásio no Colégio Jackson de Figueiredo e concluiu o segundo grau no Colégio Tobias Barreto. Entre lições de livros e ensinamentos do rio, aprendia o equilíbrio entre conhecimento e coragem, entre o mundo escolar e o mundo das águas
Aos quatro anos, o menino que se tornaria Peixe já nadava como poucos. Bastava atravessar a rua Ivo do Prado e pular, onde o peixe se tornava mar. Acostumou-se a atravessar rios e canais, ir chupar caju no outro lado, na ilha, voltando indo e voltando a nado.
Nunca foi fácil entrar via marítima por nenhum dos extremos da ilha, mas para Zé Peixe isso não era problema. Com doze anos, conhecia como ninguém o movimento das areias no leito do Rio Sergipe, podendo conduzir com segurança as embarcações. Cada correnteza, cada banco de areia móvel era, para ele, um mapa vivo, uma partitura de águas que ele dominava com precisão e intuição
Sempre se encontrava com os mais pobres que viviam no mercado, mendigos e transeuntes que já eram fãs de suas aventuras marítimas. Sua generosidade era lendária: desde menino ajudava os desvalidos, doando o que tivesse ao primeiro que pedisse, dividindo parte de seus salários com os pedintes. Dizem os mais antigos que não havia outra generosidade igual e que Zé Peixe, mesmo com fama e respeito, jamais deixou de ser amigo dos humildes
Aos oito anos, quando aviões sofreram um acidente no Rio Sergipe, pegou seu bote, remou com coragem até o local e trouxe, firme, um bilhete do piloto para a Capitania dos Portos. O comandante o repreendeu severamente por se intrometer em assuntos de segurança nacional, mas o gesto marcou o início de sua fama entre os profissionais do mar e os curiosos da cidade, mostrando que, mesmo franzino, era forte, decidido e ágil, feito do mesmo sal que corria nas águas que o moldaram
Em 1938, com apenas 11 anos, o comandante Aldo Sá Brito de Souza, precisando de agilidade numa tarefa urgente, mandou que um marinheiro chamasse Zé Peixe. O marinheiro comentou o codinome dado pelo almirante, que logo se espalhou, consolidando para sempre o nome que o acompanharia. O almirante, embora repreendesse a presença do menino nas atividades da Capitania, às vezes o chamava quando era necessário seu conhecimento precoce das coisas do mar
Ainda menino, mas com a coragem de quem já conhecia o murmúrio das águas, Zé Peixe ajudou a Marinha em momentos de tragédia. Quando os navios Aníbal Benevólo, Bagé, Baependi e Arararaquara foram torpedeados na costa sergipana, ele participou do resgate, recolhendo corpos e auxiliando onde podia. Este serviço não se limitou a um ponto do rio ou da praia: esteve no Mosqueiro, na Atalaia Velha, em Nova e até no Pomonga, enfrentando o mar e a dor com a serenidade de quem sabe que cada vida perdida merece respeito e cuidado. Mesmo jovem, seu gesto de bravura e dedicação já prenunciava o homem que se tornaria símbolo de coragem, generosidade e amor pelo rio que o viu crescer
Ao completar 20 anos, por volta de 1947, José ingressou, por concurso, no serviço de prático da Capitania dos Portos de Sergipe. Ser prático é enfrentar o risco com mãos firmes e olhos atentos: receber navios nas águas abertas, guiá-los até o porto seguro e conduzir a saída, desafiando a barra que se levanta entre rio e mar. Mas para Zé Peixe, o trabalho tornou-se poesia em movimento. Cada navio tornava-se um parceiro de dança, cada onda lhe sussurrava segredos antigos e cada correnteza parecia obedecer ao compasso de sua experiência. Era como se o próprio rio o tivesse moldado, ensinando-lhe a escutar o murmúrio da água e a falar a língua das marés
Enquanto a maioria dos práticos subia nos barcos auxiliares, Zé Peixe seguia outro rumo, o da coragem e da entrega às águas. Na entrada ou na saída da barra do Rio Sergipe, saltava do navio, às vezes de alturas que atingiam 17 metros, como se descesse do céu ao abraço do mar, amarrava roupas e documentos à bermuda e mergulhava sem hesitar. Entregava-se às correntes, nadando com força e elegância, vencendo vento, maré e correnteza, desafiando o rio com a mesma naturalidade com que respirava. Braçada após braçada, percorria de 10 a 13 quilômetros ou mais, como se o próprio mar lhe tivesse confiado segredos ancestrais. E ele dizia, com a serenidade de quem conhecia cada onda: “A chave é seguir o rumo das águas, sem lutar contra elas.” Cada braçada, cada mergulho era lição de valentia, ritmo e harmonia com o mundo que o formou
Naqueles instantes, o rio e o mar não eram apenas elementos físicos, eram parceiros e adversários, e Zé conhecia cada recanto da barra como se conhecesse seu próprio corpo. Cada banco de areia móvel, cada variação da maré, cada sopro do vento costeiro, ele sentia e antecipava como música. Conduzia navios mercantes, de carga ou de passageiros, com a confiança de quem conversa com as águas e a precisão de quem dança ao ritmo das ondas. O rio e o mar, eternos companheiros, moldavam seus gestos, e cada manobra parecia poesia em movimento, escrita pelo corpo de Zé Peixe e pelo compasso das correntes
Zé Peixe nunca passava despercebido pelas ruas. Transeuntes admiravam sua presença serena e firme, e cada um tinha um jeito de chamá-lo: “Zé Peixe”, pelo rio que parecia correr em suas veias; “Zé”, com respeito e carinho; “homem do rio”, reconhecendo nele a alma das águas; ou mesmo “Zezinho”, sussurrado pelos mais íntimos, como quem celebra a ternura e a familiaridade de um amigo que nasceu do mar e das marés
A vida profissional de Zé Peixe reuniu feitos que beiram o lendário. Em 1952, dizem historiadores que ele salvou uma tripulação de remadores do Rio Grande do Norte após naufrágio junto à barra do Rio Sergipe, como se o próprio rio lhe tivesse emprestado braços, coragem e o segredo das águas. Além-mar, jornais e revistas se encantaram com seu modo singular de praticagem. Na Alemanha, escreveram sobre “o homem-peixe”, aquele que nadava dez quilômetros após o navio, tornando bravura e precisão quase em poesia, como se cada braçada fosse verso e cada mergulho, estrofe
Ao longo de sua trajetória, Zé Peixe recebeu condecorações que eram reflexo da alma que habitava seu corpo: a Medalha Almirante Tamandaré da Marinha do Brasil, a Medalha de Ordem do Mérito Sergipano e o título de Cidadão Sergipano do Século XX. Em 2013, o Museu da Gente Sergipana eternizou sua coragem em uma escultura em tamanho real, chamada “O Prático”, lembrança viva da lenda que caminhou, nadou e dançou com as águas, para que a nova geração jamais esqueça que existem homens feitos do rio, do mar e da poesia que corre entre eles
Mesmo com fama e reconhecimento, Zé Peixe manteve a humildade de quem conhece a força do rio e sabe que a verdadeira grandeza não se ostenta. Familiares lembram que autocarros de excursão paravam diante de sua casa para vê-lo e fotografá-lo, mas nada disso jamais perturbou sua serenidade nem desviou sua vida simples
Nos últimos anos, a memória começou a se apagar como a bruma que se levanta das águas ao amanhecer. Recolheu-se à sua casa, afastando-se dos navios que tanto amou e enfrentou silenciosamente a doença de Alzheimer
Em 26 de abril de 2012, num dia em que o sol brilhava mais do que de costume, refletindo em cada onda do Rio Sergipe, e as águas balançavam suavemente, ecoando agradecimentos silenciosos por tudo que Zé Peixe havia dado ao rio e à cidade, ele partiu. Aos 85 anos, a vida do homem-peixe se fundiu com as marés que tanto amou, como se cada correnteza o levasse para sempre em seu abraço eterno. Aracaju se fez mais quieta naquele instante, e o vento parecia sussurrar sua lenda pelas ruas, lembrando que há homens feitos de água, coragem e poesia, que jamais se despedem por completo
O governo decretou três dias de luto oficial em Sergipe, e sua história continuou a correr, lenta e firme, nas águas e na lembrança de todos que conheceram o homem que nasceu do rio, viveu pelo rio e agora se fundia com ele eternamente
Zé Peixe, filho do rio e do mar, homem que transformou seu ofício em gesto poético, fez da água mais do que um meio de vida, fez dela consagração, dança e lenda, um abraço eterno da coragem, da beleza e do mistério que corre entre as correntes. E é por isso que escolas, espaços culturais e a própria política deveriam enfatizar sua vida, lembrando às novas gerações quem foi este homem que, com serenidade e bravura silenciosa, salvou vidas, deu brilho ao rio e ao mar e levou o nome de Sergipe mais longe
Ele foi um herói diferente, brando e calmo, pacífico e generoso, cuja grandeza não se media em títulos ou fama, mas em cada braçada que atravessava correntes, em cada gesto que unia água e coragem, cidade e rio, homem e natureza. Que sua história continue a fluir como as águas que o moldaram, inspirando todos a reconhecer que o verdadeiro heroísmo também habita na gentileza, na coragem tranquila e no amor pelas próprias raízes
Zé Peixe, homem das águas, filho do rio e do vento, merecia mais do que recebeu. Seu nome deveria morar nas avenidas que guardaram seus passos, no leito do rio que embalou seus mergulhos e na ponte que une Aracaju à Barra como símbolo de coragem e entrega. Porque ele foi mais que um homem, foi correnteza mansa que salvou vidas e levou esperança. Mas o tempo, às vezes cruel, tenta esconder o brilho dos que nasceram simples e fizeram da simplicidade o seu maior dom. Ainda assim, o rio o guarda, o mar o chama pelo nome, e as marés sussurram sua história aos que sabem escutar. Pois heróis como Zé Peixe não morrem, apenas continuam nadando na memória do povo e no coração do Sergipe.
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* Emanuel Rocha é Historiador, poeta popular, escritor e Repórter fotográfico
Texto reproduzido do site: roacontece com br

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