Publicado originalmente no site da Agência Sergipe de
Notícias, em 07/07/2015.
Tradição, arte e fonte de renda: a história da capital
sergipana do barro.
Saiba mais sobre o município de Santana do São Francisco, no
qual quase 5 mil habitantes vivem apenas da cerâmica
Por Monique Garcez, repórter da ASN
As águas lúcidas e vibrantes do Velho Chico poderiam ser o
ponto de partida de qualquer relato sobre Santana do São Francisco, município
distante cerca de 120 km de Aracaju. Isso se, outra matéria prima da natureza
não fosse o carro-chefe da região. O barro, que suja os pés e faz lama, é o
mesmo que esculpe, ganha forma e vai para o mundo. É o barro de Pezão, Capilé e
Chicô, antigos artesãos da cidade, e também de 70% da população que reside
nesta localidade do Baixo São Francisco.
Relatos bíblicos dizem que Deus fez o céu e a terra e que da
costela de Adão se fez a mulher. Em Santana do São Francisco, do barro se fez
mulheres, homens, vasos, animais e mais uma centena de seres e objetos. Do
barro construíram-se casas, olarias, vidas inteiras e a história de toda uma
região, que tira do fundo de grandes buracos o sustento diário.
A partir de traços fortes, pinturas delicadas, grandes
formas e frágeis miniaturas, as esculturas de argila ganham vida. A cidade do
norte do estado é polo da produção ceramista. Conhecida antigamente como
Carrapicho, a localidade foi batizada como capital sergipana do artesanato.
Logo em sua entrada, o rio da pesca, dos tototós e dos barquinhos dá as boas
vindas. O centro de artesanato, que reúne 68 pontos de venda, é também um dos
pontos de recepção. Um pouco mais a frente, à beira da pista, olarias, com
grandes fornos, produzem as cerâmicas. Do outro lado, em grandes terrenos
baldios, carroças vêm e vão com o barro. Os chamados aprontadores também se
concentram neste lugar. Eles ‘apilam’, ‘agoam’, pisam e amaciam a argila.
Do modo de falar a produção do barro
Assim como diversos países, Santana do São Francisco tem seu
próprio dicionário. Agoar é colocar água no barro. Pinicar, mexer com a enxada.
Apilar é preparar a argila. Maromba é o maquinário que ‘apronta’ o barro, ou
seja, amacia. Candangue é o ajudante do artesão. Torno é onde as peças são
modeladas. Aprontador é quem retira e prepara a matéria prima. Pisa é a unidade
de medida. 10 pisas equivalem a 30 pedaços de argila. Essa é a quantidade que
uma carroça suporta carregar. E cada 10 pisas valem R$ 15.
Explicados os vocábulos, é mais fácil esclarecer como
funciona a cadeia produtiva da cerâmica. É tudo bem organizado e, em geral, as
tarefas são divididas de modo que, a mão de obra do início não é a mesma do
fim.
Tudo começa no terreno baldio. Grandes buracos são cavados
para retirada da argila. O primeiro monte de terra retirado não serve, pois é
recheado de impurezas, terra e mato. Cerca de 30 cm abaixo do solo é onde está
o material de trabalho dos ceramistas, segundo conta o aprontador José Gilmar
dos Santos. Ele explica que, quanto mais fundo, melhor a qualidade do barro. E
se engana quem pensa que o material já sai pronto do subsolo. Para que a argila
seja manuseada, ela passa por um processo que dura em média três dias.
De acordo com o aprontador Ernando dos Santos Mendes Filho,
depois de retirado o barro, é necessário agoá-lo e pinicá-lo algumas vezes. Há
também o processo de pisada da argila, que serve para amaciá-la. E dentre esse
período de mexer e remexer o material, também é preciso deixá-lo descansar. Só
depois disso tudo é que os carroceiros, outros membros da cadeia produtiva,
podem levar e distribuir as pisas, que, nas mãos dos ceramistas, já chegam ao
custo de R$ 25.
“Consigo aprontar 100 pisas por semana”, conta Ernando. Ele
iniciou os trabalhos com o barro ainda criança. O aprontador diz que não
gostava de estudar e que aos 10 anos começou a acompanhar o pai. “Fui ficando
adulto e, como dizem, engrossando os ossos, e continuei. Graças a Deus tiro meu
sustento daqui, seja pouco ou muito. A partir daqui já conquistei uma casa e as
coisas dela. Consigo viver bem, sem aperreação”, comenta.
Perto da área onde Ernando aprontava o barro, estava Kátia
de França, sua família e alguns ajudantes trabalhando em uma olaria. No local,
vários processos de produção da cerâmica acontecem. Com tarefas delimitadas,
cada uma das sete pessoas é responsável por colocar a argila na maromba,
modelar as peças no torno, promover o polimento, colocar para secar e queimar
no forno, produzir os detalhes e realizar a pintura.
“Trabalhar com cerâmica é algo que gosto muito.
Principalmente porque envolve a minha família. Produzimos todos juntos e tenho
meus filhos por perto. Para mim, é muito gratificante. As pessoas vêm de fora
para conhecer nosso trabalho e me sinto orgulhosa”, relata Kátia, acrescentando
que a produção de sua olaria é destinada para várias localidades, dentre elas
Brasília, Minas Gerais e Bahia.
Gilson Dantas também é um dos que faz da argila o seu ganha
pão. Há 30 anos atuando como ceramista, ele conta que construiu sua família a
partir do trabalho com o barro. “Gosto de coração. Dá para viver bem com o que
ganho aqui. Agradeço muito a Deus por essa profissão”, destaca. O artesão diz
que consegue obter, em média, R$ 2.500 mensais, dispensando o que gasta com
despesas.
Dos pequenos trabalhos a grandes bustos, santos e figuras
públicas. Wilson de Carvalho, conhecido como Capilé, é famoso por construir
grandes esculturas. Ele já fez peças de 1,80 m para presépio, vasos de 1,60 m e
muitas outras criações, que são produzidas sem moldes. “Minha marca são as
peças gigantes. Faço manualmente, pois acho mais gratificante, e assim o
trabalho se torna único”, relata.
Produção atrativa
A cultura do barro em Santana do São Francisco passa de pai
para filho. O município comporta mais de 500 artesãos que, segundo Wellington
Lima, diretor do centro de artesanato, produzem uma média entre 12 e 15 mil
peças. A cerâmica é escoada para todo o Brasil e muita gente também vai até a
pequena cidade do Baixo São Francisco para conhecer de perto a arte.
Esse é o caso dos turistas do Rio de Janeiro Mara e Marcos
Aguiar, que ficaram encantados com a produção cerâmica. Eles estavam viajando
de carro por diversos estados, quando vieram para Sergipe, ouviram falar sobre
Santana do São Francisco e decidiram conhecê-la. “Estávamos interessados em ver
o artesanato sergipano, então fomos perguntando e ficamos sabendo que aqui
poderíamos encontrar”, comentou Marcos, que elogiou a qualidade das peças.
A arte da cerâmica, que se aperfeiçoa com o tempo, é,
segundo o artesão e diretor do centro de artesanato, Wellington Lima, também
alvo também de pessoas que vêm de outras cidades para ganhar dinheiro. “Hoje
você não encontra mais casa para alugar ou vender aqui em Santana do São
Francisco. Posso dizer que 50% da nossa população são de gente de fora”, disse.
E é dessa cadeia produtiva de cavar, aprontar o barro,
moldar a cerâmica e decorar, que os artesãos de Santana do São Francisco vivem.
A população de 7.038 habitantes, segundo o IBGE, carrega na alma e no sangue a
cultura que, seja de geração para geração, ou difundida por moradores de outras
cidades, se sustenta e ostenta o título de capital sergipana do barro.
Texto e imagens reproduzidos do site: agencia.se.gov.br
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