Mamede Paes Mendonça em seu escritório.
Publicado originalmente no site do Jornal A Tarde, em 06/09/2015.
Lições de Mestre.
Por Ronaldo Jacobina.
No centenário de Mamede Paes Mendonça, a saga do homem
humilde que deixou a vida rural no interior de Sergipe para tornar-se um dos
empresários mais respeitados do país
O aroma do Kouros, fragrância de Yves Saint Laurent,
espalha-se pela enorme sala do primeiro andar de um prédio simples da Praça
Conde dos Arcos, no Comércio. O ar-condicionado mantém a temperatura em 18° C,
enquanto o rádio permanece ligado na mesma estação. Nas paredes, comendas,
placas, diplomas, prêmios, fotos e outras homenagens rendidas ao dono do
escritório.
Do lado esquerdo da mesa principal, uma pasta estilo 007
guarda seus pertences inseparáveis. Abaixo da confortável cadeira de couro de
espaldar alto repousa um par de sandálias franciscanas que o ocupante da sala
costumava trocar pelos sapatos logo que iniciava o expediente. Sobre a mesa de
madeira com tampo de vidro o cartão de visitas revela sua identidade: Mamede
Paes Mendonça. Na linha abaixo, o cargo: diretor-presidente de Paes Mendonça
S/A.
Duas décadas depois de sua morte, tudo permanece como ele
deixou. O ritual é uma homenagem. Em meio a tantas lembranças, tudo é tão real
que não sobra espaço para a morbidez. Preservar o acervo pessoal foi a maneira
que a família encontrou de manter viva a memória do homem simples e de pouco
estudo que, graças a sua habilidade para os negócios, transformou-se, ainda em
vida, numa das maiores referências empresariais do setor varejista brasileiro.
Depois de morto, virou mito. "É como se ele permanecesse entre nós. Todos
os dias, ligamos o ar e borrifamos o perfume na sala que ele usava para
senti-lo vivo", explica José Augusto Andrade Mendonça, 70, o quarto dos
seis filhos do sergipano.
O herdeiro é o responsável pela administração do espólio do
pai. O prédio é um dos muitos bens que compõem o patrimônio deixado pelo
empresário e que inclui imóveis espalhados por outros estados. A maioria,
arrendada às redes de supermercados que compraram o Paes Mendonça. Ali, ninguém
fala em números. "Os herdeiros vivem de seus próprios negócios",
ressalta José Augusto, com o cuidado de quem está à frente de um inventário
ainda não concluído pela Justiça.
No mercado, especula-se que cada um dos herdeiros abocanha
uma fortuna mensal com a renda dos aluguéis. As apostas são altas. Verdade ou
lenda, ninguém nunca saberá. O segredo se mantém restrito aos filhos, netos e a
um ou outro dos 18 funcionários que o Paes Mendonça S/A ainda mantém na folha
de pagamento.
A fama de bom comerciante de Mamede se mantém até hoje. Em
agosto passado, quando teria completado 100 anos, teve parte de sua história
registrada num livro (A história em depoimentos - Mamede Paes Mendonça) que
reúne relatos de amigos mais próximos e de familiares. Em diversas capitais
brasileiras foi reverenciado por seus pares. De associações comerciais a
entidades da área supermercadista, todos celebraram o capiau que, no final dos
anos 1950, deixou o povoado de Serra do Machado, em Sergipe, para conquistar o
Brasil com a receita simples de bom comerciante. Fórmula essa que costumava
revelar a quem queria saber o segredo do seu sucesso: "Comprar bem, vender
bem e pagar em dia".
Fama maior ganhou pelo seu estilo, digamos peculiar, de
administrar os negócios. Os causos em torno do tabaréu nordestino que chegou a
ter 150 lojas de supermercados distribuídas pelos estados da Bahia, Minas
Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro viraram lendas. Esperto, as usava a seu
favor.
"Logo que cheguei a Salvador, tive que ser criativo
para sobreviver e crescer no meio de concorrentes fortes e experientes. Certas
ideias minhas eram consideradas esquisitas, mas sempre davam certo. Na boca do
povo, ganhavam outra roupagem e se transformavam em vários outros causos. Assim
se formou um verdadeiro folclore na Bahia em torno do meu jeito de
negociar", revelou o empresário durante uma palestra aos estudantes de
administração da Universidade de São Paulo, em 1988.
Uma dessas lendas foi contada pelo próprio Mamede neste
mesmo encontro na USP e transcrita para o livro (não disponível para venda),
organizado pelo ex-gerente-geral de administração de Paes Mendonça S/A,
Raymundo Paiva Dantas, 71, em parceria com a família. "Espalharam que eu
havia comprado algumas toneladas de sal, mas que havia escrito cal e que,
quando fui reclamar, o representante mostrou o pedido onde escrevi de próprio
punho, cal. Aí eles diziam que eu balancei a cabeça e falei: pois é, era sal,
eu esqueci a cedilha". Gargalhada geral.
Mamede se divertia com os causos atribuídos a ele.
"Nunca procurei desmentir ou corrigir. Pelo contrário, sempre gostei
desses casos, pois eles me deram uma freguesia imensa, uma popularidade grande
e muitas oportunidades de bons negócios", brincou. Irreverente, costumava
afirmar que sua imagem de empresário ficou ligada ao folclore de tal forma que
ele próprio, às vezes, tinha dificuldade de separar verdade e mentira. "Eu
mesmo, diante de histórias tão boas, passei a acreditar nelas".
Família
A dedicação ao trabalho o fazia sentir-se culpado de não
poder dar mais atenção à família. Falha parcialmente compensada quando os
filhos cresceram e foram se juntar ao pai no comando dos negócios. "Ele
gostava de ter todo mundo por perto, era controlador, mas sabia ouvir e
respeitar as vontades de cada um. No final, prevalecia sua opinião", conta
José Augusto. Sempre que a agenda permitia, reservava os domingos para levar os
filhos pequenos para passear. "Íamos à praia de Piatã ou ao Alto do Bonfim,
de onde se podia ver a cidade. Mesmo nos momentos mais íntimos, sempre mantinha
um olho voltado para as crianças enquanto o outro buscava novos terrenos onde
pudesse construir uma loja".
Os veraneios eram em Dias D'Ávila ou em Itaparica. Nunca
teve casa de praia. "Como não podia deixar o trabalho, nas férias
escolares aparecia em dias alternados", escreveu o filho Jaime Andrade
Paes Mendonça, no depoimento para o livro. Segundo ele, o pai não nasceu para
esbanjar dinheiro. "Era equilibrado nos gastos, valorizava cada centavo.
Como negociador era duro, porém flexível". Católico fervoroso, se em um
domingo perdia a missa, no seguinte assistia à celebração duas vezes.
"Para compensar", justificava. À mulher, Lindaura, companheira de uma
vida e parceira de trabalho nos tempos difíceis das primeiras empreitadas,
dedicava atenção especial. "Quando montou a padaria, ainda lá no interior
de Sergipe, ela ajudava a descascar os cocos para fazer os bolachões e depois
ia atender no balcão", conta a vizinha e amiga Isabel Oliveira, 90, que
acompanhou toda a sua trajetória desde a infância.
Segundo ela, ainda menino, Mamede costumava acompanhar o
pai, seu Elisário, quando este ia à cidade vizinha comprar mantimentos.
"Ele aproveitava que os caçuás iam vazios e os enchia de cambucá, que
vendia na feira. Como não podia perder tempo, vendia a mercadoria no atacado
aos feirantes. Com isso, juntou dinheiro e montou o primeiro comércio",
lembra.
Isabel, conhecida como Fiinha, conta que mais tarde, quando
também migrou para a capital baiana, suas vidas voltaram a se cruzar. Seu
irmão, Pedro, que ela criou como filho, acabou casando com uma irmã de
Lindaura, Teresa Oliveira, 81.
Virou uma família só. É a própria Teresa quem relembra
algumas das histórias que testemunhou do empresário. Irmã caçula, foi tomada
como afilhada do casal Paes Mendonça, com quem viveu até o dia em que saiu de
casa para casar. "Ele era um homem muito ocupado, mas nunca deixou de ser
atencioso com minha irmã. Só reclamava porque ela não gostava de viajar e nem
de ir à festas, que ele adorava". Foi o cunhado quem fez seu casamento com
Pedro, que, mais tarde, tornou-se um dos principais executivos da rede.
Ballantines
Casamentos, aliás, era outra especialidade do empresário.
"Era um casamenteiro, não podia ver uma pessoa solteira que logo lhe
arranjava um noivo ou uma noiva. Muitos escolhidos entre a própria
família". Teresa conta que a casa em que o casal morava, na Graça, parecia
um clube. "Ele gostava da casa cheia e agregava todo mundo. De amigos a funcionários".
As farras eram regadas a Ballantines, marca que trouxe para
o Brasil nos tempos em que os importados eram artigo de luxo. Nesta época,
distribuía 56% de todo o uísque consumido no Brasil. Tornou-se embaixador do
escocês e chegou a ser homenageado pela fábrica, na Escócia, onde usou o kilt,
tradicional traje daquele país, composto de saia xadrez, camisa e suspensórios.
Achou tão divertido que não dispensou nem a gaita de fole.
Gago de nascença, não considerava isso um problema. No seu
depoimento para o livro, a neta Maria das Graças ressalta essa história:
"Todos simpatizavam com ele. Nem mesmo o fato de ser gago e de ter pouco
estudo o abatia". A baianidade adquirida rendeu-lhe algumas superstições.
Como a de entrar e sair sempre pela mesma porta. Mesmo quando se tornou um dos
homens mais ricos do estado, não mudou o estilo de vida e andava pelas ruas sem
seguranças. Gostava de conversar com as pessoas e de prosear com os taxistas.
Quando resolveu ir morar no hotel Praiamar, onde viveu durante 11 anos com a
mulher, muitos acreditavam que era para se proteger de um eventual sequestro.
Mais uma lenda que Teresa trata de derrubar. "Eles
voltaram de uma viagem e encontraram vazamentos na casa. Foram para o hotel
enquanto os reparos eram feitos. Gostaram e ficaram".
Aos alunos da USP, o empresário deu uma terceira versão.
"Os filhos casaram e achamos melhor viver no hotel. É uma suíte simples,
mas confortável, sou muito bem tratado pelos funcionários e é até mais
econômico do que manter uma casa".
Diz José Augusto que o pai adorava conversar com os
hóspedes. "Quando simpatizava, emprestava o carro e ia trabalhar de táxi.
Andar pelas ruas era, para ele, motivo de trabalho. Nas conversas com
desconhecidos fazia suas pesquisas. "Gosto de saber o que as pessoas pensam
do Paes Mendonça, o que esperam de um supermercado, os produtos que consideram
indispensáveis... enfim, isso ajuda a melhorar o negócio", costumava
explicar.
Baby Beef
O método pouco convencional de pesquisar mostrou-se uma
estratégia infalível. "Fazíamos pesquisas de mercado, mas quando íamos
apresentar os resultados, ele dizia: 'Eu sei o que responderam. O que esperam
de um supermercado é limpeza, preço e qualidade'. E estava sempre certo",
conta Dantas. Por telefone, do Rio Grande do Sul, onde mora, o ex-funcionário
emociona-se ao falar do amigo e ex-patrão. "Era um visionário, foi
pioneiro no sistema de autosserviço, criador dos hipermercados, e abriu o
primeiro restaurante de alto padrão na Bahia, o Baby Beef, para seu deleite.
Dizia que era para receber os amigos e fechar negócio".
Generoso, gostava da benemerência. "O tempo que Irmã
Dulce viveu, seu Mamede nunca deixou faltar comida para os pacientes. E mesmo
depois que ela partiu continuou nos ajudando. Ela nunca bateu na sua porta para
não ser atendida", conta Maria Rita Pontes, presidente das Obras
Assistenciais Irmã Dulce (Osid). Ao contrário de outros empresários, gostava de
manter discrição sobre as doações que fazia, como pessoa física ou jurídica. A
rede PM foi uma das pioneiras na Bahia a contratar deficientes. Começou com os
surdos-mudos na função de empacotadores.
"Mamede foi um gênio como comerciante, um grande
realizador. Transmitiu-me muito da experiência que tenho hoje como empresário.
Tinha profunda admiração por ele", declara o sobrinho João Carlos Paes
Mendonça, presidente do Grupo JCPM. O relacionamento dos dois, garante o
empresário, era muito forte. "Tínhamos uma relação excelente. Ele foi meu
padrinho de batismo, de meu casamento e do casamento de minha filha".
Profissional bem-sucedido tanto quanto o tio, João Carlos
acabou por realizar um dos projetos que Mamede sonhava em implementar:
construir um moderno shopping center na região da rodoviária. É dele o Salvador
Shopping, um dos maiores e mais modernos centros de compra do país. Os
resultados positivos do empreendimento mostram que o faro dos Paes Mendonça
para os negócios continua rendendo história à economia brasileira.
Texto e imagem reproduzidos do site: atarde.uol.com.br
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