quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Lições de Mestre

Mamede Paes Mendonça em seu escritório.

Publicado originalmente no site do Jornal A Tarde, em 06/09/2015.

Lições de Mestre.
Por Ronaldo Jacobina.

No centenário de Mamede Paes Mendonça, a saga do homem humilde que deixou a vida rural no interior de Sergipe para tornar-se um dos empresários mais respeitados do país

O aroma do Kouros, fragrância de Yves Saint Laurent, espalha-se pela enorme sala do primeiro andar de um prédio simples da Praça Conde dos Arcos, no Comércio. O ar-condicionado mantém a temperatura em 18° C, enquanto o rádio permanece ligado na mesma estação. Nas paredes, comendas, placas, diplomas, prêmios, fotos e outras homenagens rendidas ao dono do escritório.

Do lado esquerdo da mesa principal, uma pasta estilo 007 guarda seus pertences inseparáveis. Abaixo da confortável cadeira de couro de espaldar alto repousa um par de sandálias franciscanas que o ocupante da sala costumava trocar pelos sapatos logo que iniciava o expediente. Sobre a mesa de madeira com tampo de vidro o cartão de visitas revela sua identidade: Mamede Paes Mendonça. Na linha abaixo, o cargo: diretor-presidente de Paes Mendonça S/A.

Duas décadas depois de sua morte, tudo permanece como ele deixou. O ritual é uma homenagem. Em meio a tantas lembranças, tudo é tão real que não sobra espaço para a morbidez. Preservar o acervo pessoal foi a maneira que a família encontrou de manter viva a memória do homem simples e de pouco estudo que, graças a sua habilidade para os negócios, transformou-se, ainda em vida, numa das maiores referências empresariais do setor varejista brasileiro. Depois de morto, virou mito. "É como se ele permanecesse entre nós. Todos os dias, ligamos o ar e borrifamos o perfume na sala que ele usava para senti-lo vivo", explica José Augusto Andrade Mendonça, 70, o quarto dos seis filhos do sergipano.

O herdeiro é o responsável pela administração do espólio do pai. O prédio é um dos muitos bens que compõem o patrimônio deixado pelo empresário e que inclui imóveis espalhados por outros estados. A maioria, arrendada às redes de supermercados que compraram o Paes Mendonça. Ali, ninguém fala em números. "Os herdeiros vivem de seus próprios negócios", ressalta José Augusto, com o cuidado de quem está à frente de um inventário ainda não concluído pela Justiça.

No mercado, especula-se que cada um dos herdeiros abocanha uma fortuna mensal com a renda dos aluguéis. As apostas são altas. Verdade ou lenda, ninguém nunca saberá. O segredo se mantém restrito aos filhos, netos e a um ou outro dos 18 funcionários que o Paes Mendonça S/A ainda mantém na folha de pagamento.

A fama de bom comerciante de Mamede se mantém até hoje. Em agosto passado, quando teria completado 100 anos, teve parte de sua história registrada num livro (A história em depoimentos - Mamede Paes Mendonça) que reúne relatos de amigos mais próximos e de familiares. Em diversas capitais brasileiras foi reverenciado por seus pares. De associações comerciais a entidades da área supermercadista, todos celebraram o capiau que, no final dos anos 1950, deixou o povoado de Serra do Machado, em Sergipe, para conquistar o Brasil com a receita simples de bom comerciante. Fórmula essa que costumava revelar a quem queria saber o segredo do seu sucesso: "Comprar bem, vender bem e pagar em dia".

Fama maior ganhou pelo seu estilo, digamos peculiar, de administrar os negócios. Os causos em torno do tabaréu nordestino que chegou a ter 150 lojas de supermercados distribuídas pelos estados da Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro viraram lendas. Esperto, as usava a seu favor.

"Logo que cheguei a Salvador, tive que ser criativo para sobreviver e crescer no meio de concorrentes fortes e experientes. Certas ideias minhas eram consideradas esquisitas, mas sempre davam certo. Na boca do povo, ganhavam outra roupagem e se transformavam em vários outros causos. Assim se formou um verdadeiro folclore na Bahia em torno do meu jeito de negociar", revelou o empresário durante uma palestra aos estudantes de administração da Universidade de São Paulo, em 1988.

Uma dessas lendas foi contada pelo próprio Mamede neste mesmo encontro na USP e transcrita para o livro (não disponível para venda), organizado pelo ex-gerente-geral de administração de Paes Mendonça S/A, Raymundo Paiva Dantas, 71, em parceria com a família. "Espalharam que eu havia comprado algumas toneladas de sal, mas que havia escrito cal e que, quando fui reclamar, o representante mostrou o pedido onde escrevi de próprio punho, cal. Aí eles diziam que eu balancei a cabeça e falei: pois é, era sal, eu esqueci a cedilha". Gargalhada geral.

Mamede se divertia com os causos atribuídos a ele. "Nunca procurei desmentir ou corrigir. Pelo contrário, sempre gostei desses casos, pois eles me deram uma freguesia imensa, uma popularidade grande e muitas oportunidades de bons negócios", brincou. Irreverente, costumava afirmar que sua imagem de empresário ficou ligada ao folclore de tal forma que ele próprio, às vezes, tinha dificuldade de separar verdade e mentira. "Eu mesmo, diante de histórias tão boas, passei a acreditar nelas".

Família

A dedicação ao trabalho o fazia sentir-se culpado de não poder dar mais atenção à família. Falha parcialmente compensada quando os filhos cresceram e foram se juntar ao pai no comando dos negócios. "Ele gostava de ter todo mundo por perto, era controlador, mas sabia ouvir e respeitar as vontades de cada um. No final, prevalecia sua opinião", conta José Augusto. Sempre que a agenda permitia, reservava os domingos para levar os filhos pequenos para passear. "Íamos à praia de Piatã ou ao Alto do Bonfim, de onde se podia ver a cidade. Mesmo nos momentos mais íntimos, sempre mantinha um olho voltado para as crianças enquanto o outro buscava novos terrenos onde pudesse construir uma loja".

Os veraneios eram em Dias D'Ávila ou em Itaparica. Nunca teve casa de praia. "Como não podia deixar o trabalho, nas férias escolares aparecia em dias alternados", escreveu o filho Jaime Andrade Paes Mendonça, no depoimento para o livro. Segundo ele, o pai não nasceu para esbanjar dinheiro. "Era equilibrado nos gastos, valorizava cada centavo. Como negociador era duro, porém flexível". Católico fervoroso, se em um domingo perdia a missa, no seguinte assistia à celebração duas vezes. "Para compensar", justificava. À mulher, Lindaura, companheira de uma vida e parceira de trabalho nos tempos difíceis das primeiras empreitadas, dedicava atenção especial. "Quando montou a padaria, ainda lá no interior de Sergipe, ela ajudava a descascar os cocos para fazer os bolachões e depois ia atender no balcão", conta a vizinha e amiga Isabel Oliveira, 90, que acompanhou toda a sua trajetória desde a infância.

Segundo ela, ainda menino, Mamede costumava acompanhar o pai, seu Elisário, quando este ia à cidade vizinha comprar mantimentos. "Ele aproveitava que os caçuás iam vazios e os enchia de cambucá, que vendia na feira. Como não podia perder tempo, vendia a mercadoria no atacado aos feirantes. Com isso, juntou dinheiro e montou o primeiro comércio", lembra.

Isabel, conhecida como Fiinha, conta que mais tarde, quando também migrou para a capital baiana, suas vidas voltaram a se cruzar. Seu irmão, Pedro, que ela criou como filho, acabou casando com uma irmã de Lindaura, Teresa Oliveira, 81.

Virou uma família só. É a própria Teresa quem relembra algumas das histórias que testemunhou do empresário. Irmã caçula, foi tomada como afilhada do casal Paes Mendonça, com quem viveu até o dia em que saiu de casa para casar. "Ele era um homem muito ocupado, mas nunca deixou de ser atencioso com minha irmã. Só reclamava porque ela não gostava de viajar e nem de ir à festas, que ele adorava". Foi o cunhado quem fez seu casamento com Pedro, que, mais tarde, tornou-se um dos principais executivos da rede.

Ballantines

Casamentos, aliás, era outra especialidade do empresário. "Era um casamenteiro, não podia ver uma pessoa solteira que logo lhe arranjava um noivo ou uma noiva. Muitos escolhidos entre a própria família". Teresa conta que a casa em que o casal morava, na Graça, parecia um clube. "Ele gostava da casa cheia e agregava todo mundo. De amigos a funcionários".

As farras eram regadas a Ballantines, marca que trouxe para o Brasil nos tempos em que os importados eram artigo de luxo. Nesta época, distribuía 56% de todo o uísque consumido no Brasil. Tornou-se embaixador do escocês e chegou a ser homenageado pela fábrica, na Escócia, onde usou o kilt, tradicional traje daquele país, composto de saia xadrez, camisa e suspensórios. Achou tão divertido que não dispensou nem a gaita de fole.

Gago de nascença, não considerava isso um problema. No seu depoimento para o livro, a neta Maria das Graças ressalta essa história: "Todos simpatizavam com ele. Nem mesmo o fato de ser gago e de ter pouco estudo o abatia". A baianidade adquirida rendeu-lhe algumas superstições. Como a de entrar e sair sempre pela mesma porta. Mesmo quando se tornou um dos homens mais ricos do estado, não mudou o estilo de vida e andava pelas ruas sem seguranças. Gostava de conversar com as pessoas e de prosear com os taxistas. Quando resolveu ir morar no hotel Praiamar, onde viveu durante 11 anos com a mulher, muitos acreditavam que era para se proteger de um eventual sequestro.

Mais uma lenda que Teresa trata de derrubar. "Eles voltaram de uma viagem e encontraram vazamentos na casa. Foram para o hotel enquanto os reparos eram feitos. Gostaram e ficaram".

Aos alunos da USP, o empresário deu uma terceira versão. "Os filhos casaram e achamos melhor viver no hotel. É uma suíte simples, mas confortável, sou muito bem tratado pelos funcionários e é até mais econômico do que manter uma casa".

Diz José Augusto que o pai adorava conversar com os hóspedes. "Quando simpatizava, emprestava o carro e ia trabalhar de táxi. Andar pelas ruas era, para ele, motivo de trabalho. Nas conversas com desconhecidos fazia suas pesquisas. "Gosto de saber o que as pessoas pensam do Paes Mendonça, o que esperam de um supermercado, os produtos que consideram indispensáveis... enfim, isso ajuda a melhorar o negócio", costumava explicar.

Baby Beef

O método pouco convencional de pesquisar mostrou-se uma estratégia infalível. "Fazíamos pesquisas de mercado, mas quando íamos apresentar os resultados, ele dizia: 'Eu sei o que responderam. O que esperam de um supermercado é limpeza, preço e qualidade'. E estava sempre certo", conta Dantas. Por telefone, do Rio Grande do Sul, onde mora, o ex-funcionário emociona-se ao falar do amigo e ex-patrão. "Era um visionário, foi pioneiro no sistema de autosserviço, criador dos hipermercados, e abriu o primeiro restaurante de alto padrão na Bahia, o Baby Beef, para seu deleite. Dizia que era para receber os amigos e fechar negócio".

Generoso, gostava da benemerência. "O tempo que Irmã Dulce viveu, seu Mamede nunca deixou faltar comida para os pacientes. E mesmo depois que ela partiu continuou nos ajudando. Ela nunca bateu na sua porta para não ser atendida", conta Maria Rita Pontes, presidente das Obras Assistenciais Irmã Dulce (Osid). Ao contrário de outros empresários, gostava de manter discrição sobre as doações que fazia, como pessoa física ou jurídica. A rede PM foi uma das pioneiras na Bahia a contratar deficientes. Começou com os surdos-mudos na função de empacotadores.

"Mamede foi um gênio como comerciante, um grande realizador. Transmitiu-me muito da experiência que tenho hoje como empresário. Tinha profunda admiração por ele", declara o sobrinho João Carlos Paes Mendonça, presidente do Grupo JCPM. O relacionamento dos dois, garante o empresário, era muito forte. "Tínhamos uma relação excelente. Ele foi meu padrinho de batismo, de meu casamento e do casamento de minha filha".

Profissional bem-sucedido tanto quanto o tio, João Carlos acabou por realizar um dos projetos que Mamede sonhava em implementar: construir um moderno shopping center na região da rodoviária. É dele o Salvador Shopping, um dos maiores e mais modernos centros de compra do país. Os resultados positivos do empreendimento mostram que o faro dos Paes Mendonça para os negócios continua rendendo história à economia brasileira.

Texto e imagem reproduzidos do site: atarde.uol.com.br

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