Hunald Fontes de Alencar: uma grande figura!
Publicado originalmente no site JLPOLÍTICA, em 21 de maio de 2019
“Hunald Alencar não está mais aqui”. Mentira: está!
Por Jozailto Lima
Hoje é um dia triste e alegre para a literatura brasileira.
Neste 21 de maio de 2019, nosso Chico Buarque de Holanda foi distinguido com o
Prêmio Camões de 2019, um quase Nobel de Literatura para um país sem Nobel de
Literatura. Chico, uma das melhores pérolas da cultura brasileira - seja na
música ou na literatura - merece isso e mais. Hoje é - ou seria - um dia triste
por nos remeter à morte de Hunald Fontes de Alencar em 2016. Para lembrá-lo, público
aqui neste portal de política um texto de minha autoria e de outro sentimento.
O que vai a seguir foi postada em minha página no Facebook no 21 de maio
daquele 2016.
Eu que tanto fujo da tristeza, dou-me hoje ao exercício da
tristura. E dou-me por um cessamento: de repente, “a barba e as unhas” de
Hunald Fontes de Alencar pararam de crescer.
Um dos nossos maiores poetas é hoje um homem a menos nesta
feira-doida que é a vida. O coração que tanto lhe impulsionou à criação e lhe
deu cordas pelos caminhos crespos da generosidade, resolveu dormir pra sempre
na madrugada deste sábado.
Parodiando o bom e velho W. H. Auden, no poema à morte do
poeta irlandês William Yeats, eu também digo, nesta hora fria, “Terra, acolhe
um hóspede famoso: / Hunald de Alencar, e dá lhe repouso. / Fique a taça de
Sergipe vazia / Do que continha de poesia”.
Fisicamente, Hunald de Alencar será menos um nas nossas
farras presenciais a partir de agora. Tenho pena da dor que os cigarros
sentirão com sua partida. Na noite de quarta-feira, dia 18, na companhia do meu
filho Murilo Augusto Varjão Lima, estive com ele.
Era a estreia da peça/monólogo “Billie Holliday, a Canção”,
de autoria dele, com a grande Tânia Maria e dirigida por Raimundo Venâncio. E
lá estava ele no Teatro Lourival Baptista, como de sempre todo feliz e contente
– eu e Murilo saímos dizendo que ele estava bem para idade, que soubemos ali
numa breve consulta tratar-se de 73 anos.
O teatro era a sua outra fronteira de resistência. Uma
fronteira quase lúdica, na qual se dava liricamente aos temas e aos personagens
mais doidos - Billie Holliday, a lamber o assoalho da alma humana, era uma
delas. E onde ele batia continência eterna e indesmontável ao seu sonho
comunista que o mundo se encarregou de detonar nas últimas duas ou três
décadas.
Entrei, falei com ele, conversamos sobre literatura,
perguntou sobre a data de lançamento do meu novo livro “Ainda os lobos” e no
final sentou-se do lado de fora, quase no batente, onde recebia informalmente
as pessoas naquele bom bate-papo que sempre manejava sem empunhar o aço das
razões pessoais. Hunald sabia ouvir.
Pelas vertentes da educação - bom professor de Língua
Portuguesa –, da poesia, do teatro e da camaradagem pessoal, sempre tive uma
saudável relação com Hunald de Alencar. Com ele e mais Maria Lúcia Dal Farra
fomos jurados de um dos concursos Banese de Poesia, onde quase nos matamos
lendo dois milhões de toneladas de versalhadas.
Em 2011/2012, Hunald me foi conselheiro quando estava
elaborando “Viagem na Argila”, meu quarto livro. Chamar-se-ia “Baladas roucas”,
mas, da análise dos poemas, ele me apareceu com a sugestão da troca de nome.
Consenti. E ele me brindou com cinco parágrafos para uma das orelhas.
Hunald de Alencar era um autor com “a” maiúsculo. Era e o é.
No teatro e na poesia, sua voz sempre disse com altivez a que vinha. E vinha em
lufadas largas, em voos altos. Puros e precisos. Para mim, o poema “Maria
Silva”, em “Ária Suspensa”, um dos seus livros, assinala com exatidão quem era
esse moço:
MARIA SILVA
Das margens do rio do Sal,
Maria Silva, anfíbia
cortesã de carne e lama.
A cama patente geme
de ferrugem e goma branca.
As pernas tão arqueadas,
galopes de duras pagas.
Maria Silva pranteia
os filhos da lua cava:
pelos baixios do ventre,
pelas encostas do rio,
Maria Silva transborda
os filhos que nunca viu:
entre as alvas colinas,
mortalhados de luar,
bóiam anjos incompletos,
que o rio antoja ao mar.
Como Platão andava pendurado no eterno questionamento “O que
será que Sócrates acharia disso?” em face de algo sobrenatural ou grandioso, eu
aqui me pergunto: “O que será que João Cabral de Melo Neto diria deste “Maria
Silva”? Sim, porque soa uma quase miniatura do seu “Cão sem pluma”, de núcleo
duro, mas tão terno, tão humano e tão afirmativo.
Gosto muito de um dos aforismos do Borges, segundo o qual o
sujeito pode passar a vida inteira garatujando uma obra, e apenas um par de
versos lhe salvar ao fim da lida. Se uma situação dessas tivesse de ser
aplicada ao nosso Hunald Fontes de Alencar, restaria dúvida de que ele teria
chegando ao nirvana neste quarteto?:
pelos baixios do ventre,
pelas encostas do rio,
Maria Silva transborda
os filhos que nunca viu
Seguramente, não. Dou o direito da tristeza pela morte de
Hunald, mas, alegremente, jacto-me nesta hora triste por ter partilhado com ele
momentos bons nestes caminhos nada brandos da escrita.
Nunca me esquecerei da alegria moleca com que ele sempre me
falava de “José em sonho”, poema do meu livro “Retrato diverso”, que tematizava
meu pai do outro lado da vida. Ele dizia que se lhe coubesse selecionar os 100
melhores brasileiros poemas do novo milênio, esse entraria. O poema fala de
visita no pós-morte, logicamente através do sonho:
Meu pai vence o chão e me visita
Quase todas as noites.
É tão doce a sua presença
- eu órfão neste pasto enorme
O chão que nos separa nem assusta
- não é limite pra pânico ou alarde
Apenas arde, e sei que será meu
Ao fim de qualquer tarde.
É isso aí, Hunald Fontes de Alencar, o chão que a partir de
hoje será teu, em mim por enquanto “apenas arde, e sei que será meu / Ao fim de
qualquer tarde”. Vá se entendendo aí com o camarada Caronte, amigo, e que a
terra lhe seja leve!
Texto e imagem reproduzidos do site: jlpolitica.com.br
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