Foto reproduzida do Facebook/Clara Angélica Porto e postada pelo blog SERGIPE...,
para ilustrar o presente artigo
Texto publicado originalmente no Facebook/Clara Angelica Porto, em 31 de março de 2019
Em janeiro de 1969, pouco depois do criminoso AI-5, eu era
uma jovem universitária. Tinha uma coluna diária na Gazeta de Sergipe chamada
Vida Social. Como comecei jornalismo pouco antes de fazer 17 anos, convidada
por Ivan Valença, papai e Orlando Dantas conversaram e ficou decidido que eu
aceitaria o convite, mas nunca pisaria os pés na redação, onde só tinha homens.
E assim foi que me tornei a pequena musa da Gazeta. Todos os dias, por volta
das 4 horas, deixava minha coluna no balcão da frente, com Ivan, ou seu
Orlando. Ouvia as vozes da redação, do outro lado da parede fina: ‘Ela está
aqui!’ Ancelmo Gois, que na época era foca do jornal, encarregava-se de avisar.
‘Ela hoje está de azul... de amarelo...’ Ancelmo ficava olhando pela porta
entreaberta que dava acesso à redação. Nino Porto, meu irmão, mandava acabar a
saliência. Eu tentava não rir. E seu Orlando me olhava sobre os óculos de
leitura com aqueles olhos cor de esmeralda e balbuciava algo inaudível que
significava que a coluna estava entregue e está na hora de ir embora. Eu
adorava essa corte diária e saia de lá me sentindo linda e querida. Ezequiel
Monteiro, que também tinha olhos de esmeralda, passou a deixar pequenos poemas
diários no quadro verde de avisos. Seu Orlando respeitava, Ivan curtia muito e
não apagavam, para que eu pudesse ler, afinal era poesia de Ezequiel para a
musa do jornal. E assim é que todos os dias, eu ganhava uma estrofe amorosa de
Ezequiel, que hoje, lamento não ter anotado. Com o passar do tempo, daria um
caderno. Aí Ancelmo, além de anunciar somente ‘ela chegou’, anunciava ‘tá
lendo’, ‘tá rindo’ ...
Hunald Alencar dizia que eu era a cronista que é notícia.
Porque eu fazia teatro, organizava festas com Pedrito Barreto, aprontava em
Aracaju. Já o pai dele, Clodoaldo de Alencar, dizia que eu escrevia Vida
Socialista, pelo teor político da minha coluna.
O que eu não sabia era que estava no olho dos militares, que
acompanhavam de perto a minha vida, sem a admiração dos colegas da Gazeta.
Eu havia sido convidada por Wellington Mangueira para compor
como Secretária de Imprensa a chapa para eleição do DCE encabeçada por João
Gama. Ganhamos a eleição, o que logo me colocou na lista negra do 28 BC, e
passaram a me seguir diuturnamente, sem que eu percebesse. Seu Ursino, Ramos,
muito amigo da família, percebeu um Jeep que andava devagar onde quer que eu
fosse e ficou desconfiado, mas nada falou, para não me assustar nem a meus
pais. Apenas ficou atento e passou a me dar conselhos como nunca sair sozinha
de noite.
Em dezembro de 68 fomos veranear na Atalaia Nova, o que foi
muito incentivado por seu Ursino, que convenceu papai, que estava relutante,
apesar da oferta generosa de Guega (Aglae Fontes), que ofereceu a casa que não
iria usar naquele verão.
Em janeiro, atravessei o rio de tó-tó-tó com meu irmão
Carlos Henrique, que sempre me acompanhava e cuidava, para vir a Aracaju me
matricular na Faculdade. Ao chegarmos na nossa casa da rua S. Cristóvão, fui
logo trocar de roupa. Lembro ter escolhido um vestido amarelo que eu gostava
muito, e fiz uma trança para domar os cabelos de muita praia e poucos cuidados.
Alguém chamou. Eu e Carlos Henrique corremos para o portão de ferro da grande
varanda e vimos um senhor careca, moreno alto, que perguntou pela jornalista
Clara Angelica. ‘Sou eu, o que deseja?’ O homem disse ‘chame a sua mãe, deve
ser ela, você é uma menina’. Retruquei: ‘Não senhor, sou eu mesma. Pode falar’.
Então ele me comunicou que eu estava indiciada pelo exército brasileiro e teria
que seguir com eles para o 28BC. Carlos Henrique disse que a irmã dele não iria
sair sozinha num Jeep com dois homens, que ele estava ali representando meu pai
e que eu precisava me matricular na Faculdade. O homem respondeu que eu teria
que estar dentro de uma hora no 28BC. Carlos Henrique disse que iria comigo de
ônibus e o homem aceitou, dizendo para não ousarmos não ir, pois eles estavam
de olho. Seu Ursino, que também morava na rua São Cristóvão, viu o Jeep passar
e o seguiu, compreendendo o que estava acontecendo. Foi à Atalaia Nova e avisou
meus pais. Papai, que era amigo de infância do General Djenal Tavares de
Queiroz, logo telefonou para ele, avisando e pedindo interferência. O General
prometeu ajudar.
Fui de ônibus com Carlos Henrique para o 18 do Forte e
subimos a então já famosa colina.
Lá chegando, dois homens já me aguardavam e avisaram a meu
irmão que eu seria levada para um interrogatório e ele podia ir embora. Carlos
Henrique disse que iria esperar por mim e ficou sentado no galpão, enquanto eu
seguia com os homens.
Na sala, haviam três homens, um diante de uma máquina de
escrever, e mais dois, um dos quais moreno de bigode e que se apresentou a mim
como Major Bandeira.
Logo que sentei, de frente ao Major, ele me apontou uma
pasta enorme e alta, cheia do que parecia documentos e fotos e perguntou: ‘Sabe
o que é isso’? Respondi que não. Ele então iniciou um pequeno discurso de que
eu era muito jovem, bonita e inteligente, de boa família e não devia andar com
quem não presta. Eu ouvia atenta e calada. O major abriu a pasta e começou a me
mostrar fotos onde eu aparecia, ora dançando feliz em festinhas do DCE na
faculdade de Química, ora na praia, na piscina da Atlética, comprando maquiagem
em A Moda, na faculdade, na posse do DCE. Depois jogava colunas na minha
frente, onde eu defendia igualdade social, liberação da mulher; em uma delas eu
defendia maternidade para mulheres que queriam ser mães mas não queriam casar;
em outra, eu louvava o conhecimento de história e dialética de Wellington
Mangueira; em outra, uma crônica sobre o casamento de meu primo Carlos Cruz com
Maria Stael. O major pedia o porque de cada coisa. Na crônica de Carlinhos e
Stael, eu encerrava falando da felicidade deles e de como era triste que numa
sociedade desigual, nem todos pudessem viver momentos lindos como aquele.
Foi aí que o major me ofereceu um cigarro, que aceitei. Um
homem veio por trás de mim e deu um tapa no cigarro, antes que eu o tivesse
acendido. O cigarro voou longe e meus lábios sangraram um pouco. Fitei o major
longamente, calada. Nada disse. Ele não me olhou de volta. E continuou falando
como se nada tivesse acontecido. Serviu-me um cafezinho, que deixei ali, na
mesa, sem tocar. A um certo momento, não resisti e peguei o café para tomar um
gole. Outro tapa fez a xicrinha de plástico voar longe. Dessa vez, atingiu meu
dedo mindinho. Um outro homem entrou e falou ao ouvido do major. Não sei quanto
tempo havia se passado, algumas horas, pois passamos muito tempo olhando e
explicando o dossiê.
A partir desse momento, o major mudou o tom do discurso, e
passou a me dar conselhos. Que me limitasse a escrever crônica social, que não
falasse de política, muito menos de política estudantil. Que eu era filha de um
homem honrado e devia ter cuidado. Chegou até a falar de si e da família e
pedir que eu os promovesse no jornal. Eu escutava a tudo calada.
Então ele passou a me perguntar se eu conhecia Wellington,
João Gana, Jackson Barreto, Didi Macedo, Alencar e Aglae, uma lista imensa. Eu
ia dizendo que sim, que conhecia todos, que Aracaju era uma cidade pequena e todos
nos conhecíamos. Ele tentou aprofundar sobre o nível dessas relações e eu, que
rapidamente entendi que ele havia recebido um recado favorável para mim (pensei
logo em papai e general Djenal), menina de trança com sorriso meigo, desviava e
a tudo respondia sem nada dizer. Tornei-me mestra em falar e falar e nada
revelar. Sou assim até hoje. Acho que aprendi naquele dia. Ficamos assim horas,
ele tentando colher e eu me fazendo de desentendida, fazendo cara de menina.
Foi aí que ele disse que iria me liberar, mas que ficariam
de olho. A partir daquele momento, minhas colunas seriam previamente censuradas
e só se publicaria o que passasse. Fez uma lista de assuntos que eu não podia
escrever.
Quando sai da sala, onde havia entrado umas 9 h da manhã, já
eram quase 4 horas da tarde. Encontrei Carlos Henrique sentadinho, a me
esperar. Nosso abraço foi intenso.
Voltamos direto para a Atalaia Nova, onde encontramos nossos
pais, com seu Ursino ao lado, amigo de verdade é assim. Pediram que eu não
falasse sobre o assunto com ninguém, a pedido do general Djenal. Assunto morto,
disse papai - é uma ordem!
Com o coração em frangalhos, fui para o quarto finalmente
chorar e depois, Carlos Henrique me levou para tomar um banho de mar, que foi
curativo e libertador.
Ao chegar na Gazeta para deixar a coluna, seu Orlando,
grave, me chamou para uma conversa e disse que não era só eu, todo o jornal
estava sob vigilância diária e nem uma palavra seria publicada sem censura
prévia. Aconselhou-me que desse um tempo sem falar em política e questões
sociais, que me detivesse a assuntos sociais e não socialistas e a assuntos
culturais. Foi a época que publiquei muita coisa do movimento hippy que
começava nos Estados Unidos, e usava arte como metáfora de mensagens.
Continuei indo varias vezes com Didi Macedo no fusquinha
dela, para as imediações da fábrica do Bairro Industrial às 5 da manhã,
distribuir panfletos mimeografados e cheirando a álcool, que a turma executiva
clandestina fazia nas caladas da noite. Cobríamos os números da placa do fusca
de Didi com fita isolante preta, um 0 virava um 8, cada dia uma invenção. Papai
me trancou no quarto para eu não ir para o congresso de Ibiuna, eu havia sido
convidada por Wellington. Foi Tina no meu lugar.
Também continuei dando as aulas de Wellington nas escolas
públicas dos bairros e era Jackson Barreto quem me acompanhava, levava de
ônibus. Enquanto eu dava as aulas, ele conversava com os estudantes levando
clareza - os dois ensinávamos, eu dentro e ele, fora da sala de aula. Depois
Jackson, um cavalheiro, me deixava na porta de casa, exigência de papai, e
caminhava para a casa dele na rua de Estância. Fazíamos tudo por Wellington.
Amávamos Wellington, que era nosso grande líder e muito nos ensinava.
Nesse mesmo ano, em setembro, conheci o homem que viria a
ser meu marido pouco mais de um ano depois.
Ivan Valença um dia escreveu sobre mim, que a repressão me
levou a buscar o amor, que acabou me levando para longe.
Mas ficou a marca desse dia. Em todas as minhas memórias de
Aracaju, todas lindas, ficou a cara daquele major de bigode, daquele tapa, do
gosto de sangue na boca. Ficou o retrato da amargura da ditadura militar no
Brasil. O que se passou comigo nada é, comparado aos horrores sofridos por
nossos amigos próximos e por milhares de brasileiros.
Não há nada para comemorar.
Ditadura nunca mais!
Texto reproduzido do Facebook/Clara Angelica Porto
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