Publicado originalmente no site Expressão Sergipana, em 01 de abril de 2019
Por que não se fala em Manoel Bomfim?
Documentário busca dar visibilidade à vida e obra de um dos
principais pensadores brasileiros
De Paulo Victor Melo
“Uma voz que ousava dizer o indizível”, “um pensador que não
temia pensar o impensável”, “o rebelde esquecido”. Com essas palavras, o
sociólogo Ronaldo Conde Aguiar referiu-se a Manoel Bomfim, um dos intelectuais
mais importantes para a constituição da base, corpo e alma do pensamento social
brasileiro.
Com um trabalho sobre a vida e obra de Bomfim, Conde Aguiar
recebeu, em 1999, o prêmio de melhor tese de doutorado no I Concurso Brasileiro
de Obras Científicas da Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais
(ANPOCS), demonstrando a importância da contribuição de Bomfim para o
entendimento das raízes do Brasil, para a explicação da realidade brasileira e
para a compreensão da relação do país com a América Latina.
Mas se o legado de Manoel Bomfim cumpre papel determinante
para o diagnóstico e as buscas de saídas democráticas sobre/para o Brasil, por
que esse autor tornou-se esquecido ao longo do tempo? Essa é uma inquietação
presente há algumas décadas na intelectualidade brasileira, desde que Darcy
Ribeiro, na metade dos anos 1980, o classificou como “o pensador mais original
da América Latina”. Exemplos disso são os textos escritos por Gilson Dantas, em
1997, em que pergunta por quais motivos Manoel Bomfim fica à margem dos livros
escolares, e de Aluízio Alves Filho, que afirma ser Bomfim o “ensaísta
esquecido”.
Passadas mais de duas décadas dos questionamentos de Conde
Aguiar, Gilson Dantas e Aluízio Filho, o cineasta e documentarista argentino,
radicado há anos no Brasil, Carlos Pronzato renova as inquietações ao produzir
o documentário “Por que não se fala em Manoel Bomfim?”
Com o título não deixando dúvidas sobre os objetivos da obra
audiovisual, Pronzato acredita que, embora esquecido, Bomfim permanece atual,
mesmo após aproximadamente 87 anos da sua morte. “A voz deste ‘rebelde
esquecido’, mesmo enfraquecida, chegou até nós por meio de várias
reverberações, e em uma contemporaneidade profundamente marcada pela corrupção
política, pela descrença generalizada em várias instituições e por inúmeras
mazelas mal resolvidas no plano social, o conteúdo das reflexões do intelectual
sergipano torna-se atual e necessário, enquanto instrumento de analise para
pensarmos o processo político, bem como as relações entre estado e sociedade no
país”, afirma.
Uma das principais hipóteses sobre o “esquecimento” de
Manoel Bomfim, abordada no documentário, diz respeito ao caráter revolucionário
das suas ideias, tendo sido, por exemplo, uma das mais expressivas vozes
dissonantes às teorias racistas de branqueamento da população como solução para
os problemas do país, muito em voga à época. Bomfim, no caminho oposto,
afirmava que o problema fundamental era uma espécie de “parasitismo social” das
elites e defendia a pluralidade étnica como um potencializador do
desenvolvimento do país, sendo a educação o caminho para a emancipação das
classes populares.
Com lançamento previsto para o início de abril, próximo a
data da morte de Manoel Bomfim (21 de abril), o documentário é construído a
partir de pesquisa histórica e entrevistas com pesquisadores que produziram e
continuam a produzir materiais sobre a obra de Bomfim, como Aluízio Alves
Filho, citado anteriormente; Rebeca Gontijo, professora da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro e autora do livro “Manoel Bomfim”; José Vieira da Cruz,
professor da Universidade Federal de Alagoas, e co-organizador do livro “Manoel
Bomfim e a América Latina: a dialética entre o passado e o presente”; e Ricardo
Sequeira Bechelli, que escreveu “Nacionalismos anti-racistas: Manoel Bomfim e
Manuel Gonzalez Prada”.
Entendendo que a obra de Bomfim está conectada e influenciada
diretamente pelo chão que o moldou, o documentário conta com depoimentos de
diversos intelectuais, estudiosos e ativistas de Sergipe, estado natal de
Bomfim, a exemplo de Terezinha Oliva, historiadora e professora emérita da
Universidade Federal de Sergipe; Fernando Sá e Romero Venâncio, respectivamente
professores de História e Filosofia da mesma instituição; Aglaé Fontes,
integrante da Academia Sergipana de Letras e pesquisadora da cultura sergipana;
Ana Lúcia Vieira Menezes, professora e ex-deputada estadual.
Um inquieto de múltiplas áreas
Nascido em Aracaju, em 8 de agosto de 1868, Manoel Bomfim
foi um intelectual com contribuição destacada em diversas áreas do
conhecimento. Médico, com estudos em Salvador e no Rio de Janeiro; especialista
em Psicologia, com curso na França iluminista; sociólogo; historiador. Em todos
os campos de atuação, Bomfim se caracterizou pelo rigor acadêmico aliado à
contribuição social das suas pesquisas e trabalhos, confirmando-o como um
intelectual atento aos problemas do seu tempo e preocupado em contribuir no
desenvolvimento do país.
Na área da educação, Bomfim foi também fundamental na defesa
de uma educação pública democrática e popular. Convidado pelo então prefeito do
Rio de Janeiro, Francisco Werneck de Almeida, em 1896, Bomfim assumiu o cargo
de sub-diretor do Pedagogium, instituição criada seis anos antes para
supervisionar as atividades pedagógicas do país à época. Naquele período, pela
função que desempenhou, Bomfim formulou diversas iniciativas de reformas e
melhorias no ensino público, sendo um crítico do distanciamento entre os planos
governistas para a área e a realidade deficitária da educação brasileira. Com o
mesmo empenho transformador, Bomfim ocupou, por duas vezes, o cargo de diretor
de Instrução Pública no antigo Distrito Federal, entre os anos de 1895 e 1900 e
entre 1905 e 1907.
Bomfim buscou denunciar e refletir sobre os problemas do
país também via atuação na imprensa, tendo sido editor e articulista de
diversos veículos de comunicação, como O Correio do Povo, O Comércio,
Ilustração Brasileira, Notícia, Tribuna e O País, além de periódicos
especializados em educação, como Revista Pedagógica de Educação e Ensino e
Revista Pedagogium.
Demonstrando a sua inquietação com a desigualdade estrutural
do Brasil, Bomfim participou também da política nacional, ocupando o cargo de
Deputado Federal no lugar de Oliveira Valladão, com um mandato de pouco mais de
um ano, entre agosto de 1907 e dezembro de 1908. Candidatou-se à reeleição, mas
sem êxito.
Ligada ao Partido Operário Indepedente, Bomfim participou da
criação da Fundação da Universidade Popular de Ensino Livre, instituição
centrada na educação de jovens e adultos, que representou um marco na luta por
um modelo de educação popular no Brasil.
Em termos de produção intelectual e literária, Manoel Bomfim
foi, como já dito, dos principais autores sobre a questão do desenvolvimento
social e econômico do Brasil e da América Latina, sempre com uma perspectiva
crítica e propositiva. Dentre as suas obras, destacam-se: América Latina: males
de origem; O Brasil na América: caracterização da formação brasileira; O Brasil
Nação: realidade da soberania brasileira; O Brasil na História: deturpação das
tradições, degradação política; Lições e Leituras para o primeiro ano; Crianças
e Homens.
Cinema militante
Da mesma forma que a obra de Manoel Bomfim, o cinema de
Carlos Pronzato, diretor do documentário “Por que não se fala em Manoel
Bomfim?”, coloca o seu fazer profissional a serviço da memória coletiva
transformação da sociedade.
Os seus mais de 70 documentários sobre personagens e
momentos da história do Brasil e da América Latina são a prova disso, a exemplo
de: “O Panelaço, a rebelião argentina”; “Bolívia, a guerra do gás”; “, isto
aqui vai virar o Chile, escolas ocupadas em São Paulo”; “Terceirização, a bomba
relógio”; “Ocupa Tudo, Escolas Ocupadas no Paraná”; “A Escola Toma Partido, uma
resposta ao Projeto de Lei Escola sem Partido”; “1917, a Greve Geral”; “1968, a
Greve de Contagem, primeira greve durante a ditadura militar”; “Mestre Moa do
Katendê, a primeira vítima”; “A Revolta do Buzu”, “Carabina M2, uma arma
americana, Che na Bolívia”, “Madres de Plaza de Mayo, verdade, memória e
justiça”, “Marighella, quem samba fica, quem não samba vai embora”,
“Pinheirinho, tiraram minha casa, tiraram minha vida”, “Mapuches, um povo
contra o Estado”, “A partir de agora, as Jornadas de Junho 2013”, “Dívida
Pública Brasileira, a Soberania na Corda Bamba”; “José Calasans, tradutor do
Sertão”; dentre outros.
A quantidade e relevância social dos trabalhos de Pronzato –
que é também diretor teatral, escritor e poeta, já lhe renderam homenagens do
Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO), além dos prêmios
Roberto Rossellini, em 2009, na Itália, e Liberdade de Imprensa, pelo jornal
Tribuna da Imprensa Sindical, do Rio de Janeiro, em 2017.
Ao mesmo tempo em que finaliza “Por que não se fala em
Manoel Bomfim?”, Pronzato está prestes a lançar também o documentário “Lama: o
crime VALE no Brasil”, sobre o crime ambiental na cidade de Brumadinho, em
Minas Gerais.
Num cenário de flagrantes restrições à liberdade de
expressão, de criminalização das lutas populares e de retirada de direitos, a
obra de Carlos Pronzato – assim como a de Manoel Bomfim – se afirma como parte
fundamental da resistência democrática. Assim, é possível colaborar
financeiramente com as obras do cineasta, através de depósito na seguinte conta
bancária: Banco do Brasil, agência 0346-8, conta corrente: 222.567-0.
* Paulo Victor Melo - Jornalista, mestre e doutorando em Comunicação e Política.
Tem experiência com jornalismo sindical, políticas de comunicação na América
Latina, mídias públicas e comunicação e direitos humanos
Texto e imagem reproduzidos do site: expressaosergipana.com.br
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