Foto: Maurício Pisani/El País.
Publicado originalmente no site Expressão Sergipana, em
10/10/2016.
Outubro em Laranjeiras: Cabaú, Lambe-Sujo e Caboclinhos.
O lambe-sujo e os caboclinhos é considerado a maior
manifestação de teatro espontâneo ao ar livre do mundo segundo Câmara Cascudo.
De Osvaldo Ferreira Neto.
Sergipe pode ser pequeno, mas tem um grande passado e uma
gigantesca cultura popular. Já ouviu falar em mel de cabaú? Lambe-sujos versus
Caboclinhos? Pois aqui no “Senta que lá vem história” vocês ficarão sabendo um
pouco sobre a história dessa manifestação cultural.
Dos livros de história do ensino fundamental às páginas dos
folhetins globais, a história de um Brasil que colocou de um lado os índios e
do outro os negros, aqui ganha novos ares. Uma luta, mas com um tom de
ludicidade artística, simplesmente bela, que o fato histórico merece ter. No
município de Laranjeiras, na região da Cotinguiba, uma vez por ano, na segunda
semana de outubro, trabalhadores e estudantes se transformam em reis e rainhas
e protagonizam momentos de êxtase, onde opera a alegria mais sincera que os
olhos estrangeiros poderiam um dia presenciar.
Laranjeiras ganha uma atmosfera mágica, onde tudo parece ser
possível. O carro puxado por um cavalo, a ialorixá debutante esgueirada na
janela de casa, uma parede tatuada de mãos. O auto popular da contenda dos
Lambe-sujos contra os Caboclinhos é realizado anualmente e atrai muitos curiosos,
sejam eles turistas ou pesquisadores. A beleza das indumentárias e a folia dos
maracatus são atrativos unânimes, além da divertida brincadeira de “melar” e
das corridas dos chicotes dos taqueiros. A guerra entre os Lambe-sujos e
Caboclinhos é uma representação das investidas que os indígenas faziam aos
quilombos, a mando dos capitães-do-mato dos engenhos, para derrotar e
aprisionar os negros escravos fugidos, posto que os índios conhecessem melhor a
região e teriam como recompensa bens materiais que pudessem arrecadar dos
negros.
Na madrugada do domingo, às 4 horas, inicia-se a alvorada de
foguetes de artifício e o primeiro encontro do grupo dos negros, os
Lambe-sujos, na casa do rei. Nas primeiras horas da manhã, também os
caboclinhos começam o seu ritual. Em um determinado momento da festa os negros
tentam roubar a rainha dos caboclinhos, mas são presos e levados de porta em
porta pelos guerreiros que os capturaram, para que paguem pela sua liberdade. À
tarde, há uma tradicional batalha pela libertação da rainha, tendo a vitória
dos caboclinhos. O grupo musical que acompanha o folguedo é composto por
ganzás, pandeiros, cuícas, tambores e reco-recos.
Na festa do Lambe-sujo, além da música e cantos, a cultura
também é contada através dos trajes dos personagens do festejo. Os negros usam
calção vermelho, na cabeça uma espécie de capacete, ou gorita, pés descalços e,
como arma, uma foice de madeira. O rei usa calça vermelha, camisa de manga
comprida e colete. A princesa traja um vestido de sirê, mangas curtas e diadema
de papelão. Mãe Suzana usa bata vermelha com retalhos variados, lenço na cabeça
e um cesto de palha cheio de latas velhas e objetos imprestáveis. Os
caboclinhos usam traje convencional de índio, saiote e cocar de penas.
Os Lambe-sujos pintam os corpos de tinta preta extraída do
melaço de cabaú, proveniente da cana-de-açúcar muito abundante na região da
Cotinguiba. Por sinal, esses brincantes se travestem de negros para lembrar os
escravos dos inúmeros engenhos existentes na região, vestem calções e gorros
vermelhos e usam uma foice de madeira como arma, símbolo do trabalho no
canavial. Já os caboclinhos têm os corpos pintados de tinta xadrez vermelha,
usam cocares e saiotes de penas, pulseiras e colares e usam arcos e flechas.
Às onze horas do dia, todos se dirigem às portas da igreja
da Matriz, onde o pároco da cidade dará a segunda benção à festa e aos grupos.
Acontece a primeira embaixada, que é o enfrentamento dos grupos através de seus
líderes. O grupo indígena se recolhe para o almoço, enquanto os lambe-sujos se
dirigem à casa do rei para a tradicional feijoada, que foi preparada pela
esposa do rei e líder do grupo, atualmente o senhor Zé Rolinha, com
ingredientes doados pela população. Em determinado momento por volta das quinze
horas, acontece uma embaixada, que seria a representação de um possível
flagrante dos negros pelos índios. Os negros conseguem fugir. Com o passar das
horas já se dirigindo para o fim da tarde, os dois grupos se encontram na via
rente ao local onde está montado o quilombo (o mocambo).
Acontece mais uma embaixada, em que os líderes dos
Lambe-sujos e dos Caboclinhos se enfrentam com espadas e varas. Os negros
vencem mais uma vez. Então os índios saem de cena, e os negros vão para o
quilombo, onde acontece o auge da evolução do grupo. Um mastro foi levantado na
noite anterior à festa, e nele sobe um negro Forro para ficar de vigia. Quando
os índios se aproximam ele sinaliza, e os negros ficam a postos. Acontece mais
uma embaixada, que tem defesa dos líderes, do Pai Juá com seus feitiços e mais
uma vez os negros vencem. Então na última embaixada, com uma demora maior na
representação da disputa, o cacique dos Caboclinhos acaba vencendo e os outros
índios o ajudam a aprisionar os outros negros.
O folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo no Dicionário
do folclore brasileiro aponta variante dessa Festa em Alagoas onde é conhecida
por Quilombos. Lá, os ‘Lambe-sujos’ (os negros) usam para a cobertura da cabeça
chapéus de palha, em vez de gorro e têm um rei e uma rainha. Contrário ao
ritual atual da Festa de Laranjeiras, a rainha dos negros é que é raptada pelos
Caboclinhos. Não há comissão para negociar a rendição. Há dança dos negros ao
som do canto Samba nêgo / branco não vem cá / se vier / pau há de levar, e duelos
de espada (com o rei) e de foice (com os demais elementos do grupo). No final,
os caboclinhos penetram no ‘quilombo’. O lambe-sujo e os caboclinhos é
considerado a maior manifestação de teatro espontâneo ao ar livre do mundo
segundo Câmara Cascudo. Hoje, segundo o Ministério da Cultura, a festividade em
Sergipe cresce ao contrário de outras regiões do Brasil e vem se tornando um
exemplo de salvaguarda do nosso patrimônio nacional cultura.
Esse patrimônio localiza-se em Laranjeiras, que fica a 24,4
Km da capital sergipana. É muito pertinho. Na festa dos Lambe-sujos e
Caboclinhos a mística da festividade é singular, é a história aos seus olhos e
vale a pena conhecer e vivenciar.
Texto e imagem reproduzidos do site:
expressaosergipana.com.br
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