Crédito: Maria Odília/Arquivo JC.
Crédito: Jorge Henrique/Equipe JC.
Fotos reproduzidas do site jornaldacidade.net
Imagens postadas por MTéSERGIPE, com o
fim de ilustrar o presente artigo.
José Martins Ribeiro Nunes, mais conhecido como Zé Peixe (Aracaju,
5 de janeiro de 1927 - Aracaju, 26 de abril de 2012), foi um prático brasileiro
que se tornou uma figura lendária no estado de Sergipe, devido a seu modo
incomum de exercer sua atividade.
Publicado no site portosma, em 26/03/2007
A incrível história de um prático chamado Zé Peixe.
Ele nasceu e mora em Aracaju e quase todos os 80 anos foram
vividos dentro d’água, buscando navios.
Por Marcia Bindo, do site vidasimples.abril.com.br
Do alto do barco, dá para ouvir a imensidade de mar
chamando. Uma voz macia, sussurrada. Ele apruma os pés na beirada, estende os
braços para trás, estufa o peito e salta num vôo ligeiro. A água suaviza a
queda, envolve-o com um abraço de boas-vindas. Está em casa. Logo os botos vêm
chegando, como de costume, para fazer companhia na travessia.
Esta é a história de um peixe chamado José. Há mais de seis
décadas ele passa a maior parte do tempo na água. Nada quase diariamente cerca de
10 quilômetros por dia, está habituado a saltar de navios de mais de 40 metros
de altura e é capaz de façanhas homéricas no mar – mesmo com seus 80 anos. Zé
Peixe, como é conhecido em Aracaju, é reverenciado por marinheiros dos sete
cantos por sua humildade, bravura e profundo conhecimento das coisas do mar.
Uma lenda viva
E, como toda lenda, tem suas particularidades. Desde que
começou a trabalhar no porto de Aracaju, Zé Peixe nunca mais tomou um bom banho
de chuveiro. Para quê, se está sempre na água? Também quase não bebe água doce.
Gosta mesmo é de dar uns golinhos de água salgada nos trajetos que nada. “Faz
um bem danado à saúde”, diz ele.
Conhece como ninguém os segredos da Boca da Barra, onde o
rio Sergipe se abre para o mar e bancos de areia se formam de uma hora para
outra, colocando em risco as embarcações. Sabe a profundidade das águas pela
cor e as correntezas pela variação de temperatura e direção do vento.
Zé Peixe é o prático mais conhecido do planeta. Prático é o
sujeito que ajuda os comandantes a conduzir os barcos na entrada e saída do
porto, orientando-os a manobrar com segurança. Sua presença é obrigatória em
qualquer cais do mundo no momento de atracagem e saída dos navios. O que faz de
Zé Peixe uma espécie rara é a maneira como trabalha: ele vai buscar o navio a
nado, enquanto seus colegas recorrem a um barco de apoio. E, quando tira o
navio do porto, em vez de voltar de barco ele zapt!, salta no mar. Faz assim:
enrola a camisa, coloca junto com os documentos e os trocados em um saco
plástico e amarra fi rme no calção; mergulha e volta para casa com braçadas
elegantes, ritmadas, sem movimentar as pernas para não atiçar os tubarões. “Se
for uma distância mais ou menos, o importante é não se afobar. O jeito é não
brigar com as ondas nem ir contra a correnteza”, ele fala, sempre gesticulando
suas nadadeiras.
Quando Zé Peixe chega ao porto é uma alegria só. Ele curva
seu corpo para cumprimentar funcionários, marujos e capitães, como se os
estivesse reverenciando. “Não existe ninguém como ele”, diz um. “Uma fi gura
lendária de Aracaju”, afi rma outro. “Peixinho é um ídolo”, conta outro homem
do mar.
É certo que o porto de Aracaju não é lá muito movimentado.
Mas, por causa de Zé Peixe, ganhou fama internacional, espalhada por navegantes
de fora que lá atracaram. “Os gringos me chamam de Joe Fish”, diz. Certa vez,
um capitão russo de um cargueiro chegou a pedir que o detivessem quando estava
para se lançar ao mar – achou que ele estava se suicidando.
Zé é peixe miudinho. Tem apenas 1,60 metro de altura e 53
quilos. Mesmo franzino, já realizou muitas grandezas. A maior proeza foi quando
socorreu o navio Mercury, que ardia em chamas em alto-mar, vindo das
plataformas da Petrobrás e com funcionários a bordo. Zé pegou carona num
rebocador, ligeiro chegou ao navio e conduziu a embarcação até um ponto onde
todos pudessem saltar e nadar para terra fi rme. “Eu só fiz o que tinha de
fazer, compreende?” Ele não gosta de falar muito de si mesmo. “Por causa de sua
condição física exemplar, ele conseguiu salvar inúmeras vidas”, conta Brabo, o
chefe dos práticos, que há 26 anos convive com Peixinho. Em 1941, ele e toda a
população de Aracaju viram na praia os corpos de náufragos de três navios
bombardeados por embarcações alemãs na Segunda Guerra Mundial. A partir daí,
ninguém nunca mais se afogou perto dele.
Maré cheia
Desde menino novo, Zé dá suas pernadas no rio Sergipe. Os
pais, dona Vectúria e seu Nicanor, que ensinaram. De sua casa, era só cruzar a
rua de terra para dar no rio. Em tempo de maré cheia, a água vinha bater na
porta. Moleque arretado, José Martins Ribeiro Nunes aprendeu a atravessar o rio
para chupar caju na outra margem do rio. Aos 12 anos já nadava muito bem. Sua
casa era vizinha à Capitania dos Portos e logo foi reparado pelos marinheiros.
De observar a destreza do menino, um almirante o batizou novamente – virou Zé
Peixe. Quando chegou o tempo certo, com 17 anos, formou-se prático. Dos cinco
irmãos, Rita era a única que acompanhava as peripécias a nado.
Naquela época, meninas não se banhavam no rio nem podiam
sair andando com trajes de banho – só ela, no meio da molecada. Zé lhe ensinou
tudo sobre o mar. “Ensinou também meus fi lhos e netos. Ele amarrava nos braços
bóias de coco seco, que não afunda”, diz Rita, uma década mais nova, que de
tanto nadar com o irmão levou o sobrenome Peixe.
Zé nunca saiu da casa onde nasceu, umas das mais antigas de
Aracaju. Nem mesmo quando se casou, há mais de 40 anos (está viúvo há 20 e não
teve filhos). Ajeitou uma casa para a mulher, mas não arredou o pé de lá –
sempre estava cuidando de alguém da família, ora a mãe, ora um irmão enfermo.
“Vou morrer aqui”, diz. “Mas só quando o capitão lá de cima desejar.”
Hoje uma avenida asfaltada o separa do rio. Quando não está
no porto, Zé vai até lá para cuidar de seus três barquinhos de madeira
ancorados. “Se não tiver um barquinho pra brincar fico doidim.” O casebre por
fora é pintado de branco, mas dentro é todo azul. Está entulhado de cacarecos
que juntou pela vida, entre eles títulos e medalhas. Não joga nada fora e não
gosta que arrumem sua bagunça. Tudo remete ao mar: miniaturas de barcos
espalhados pelos cômodos e desenhos de lápis de cor grudados nas paredes. E
muitas imagens de santos católicos. Quem chega da família já vai pedindo a
bênção. E tem também quem chega para pedir uns trocados. É que Zé costuma
distribuir seu salário aos pedintes. Velhos pescadores que não podem mais
trabalhar, desempregados e inválidos conhecem de perto sua bondade.
Espécie rara
Mesmo aposentado há mais de 20 anos, Zé Peixe continua
trabalhando – por gosto. Acorda cedo, com o escuro. Não tem hora certa para
trabalhar. Depende do fluxo de navios no porto. E das marés. Acostumou seu
corpo a comer pouquinho, porque barriga cheia não se dá com o mar. Dá gastura.
De manhã, basta um pão com café preto. E, depois, só fruta. Quando passa o dia
inteiro no porto, faz jejum. O doutor já confi rmou: Zé tem coração de menino.
Nunca fumou nem bebeu. Seu vício mesmo é o mar.
Se não está a pé, está com sua bicicleta. Sempre descalço.
Só usa sapatos aos domingos, para entrar na missa, ou em ocasiões especiais.
“Teve uma época que, para não fazer feio, o danado andava com um sapato. Um dia
descobri que o sapato não tinha sola”, confessa o amigo Zé Galera. “Ele é o
único que tem autorização para andar maltrapilho no terminal marítimo, sempre
de bermuda acima da cintura e pés no chão. Por ser uma raridade, um cidadão
totalmente fora do padrão, ele virou uma exceção às regras”, conclui Galera,
que aprendeu a nadar com ele aos 6 anos e hoje é seu companheiro na praticagem.
“Ele é meu herói”, diz o deputado Fernando Gabeira. Quando
estava exilado na Alemanha, o deputado viu uma reportagem sobre Zé Peixe. A
história do bravo nadador chamou sua atenção. Quando retornou ao Brasil, foi
conhecer de perto o tal sergipano. “É uma figura extraordinária. Tentei fazer
um filme sobre a vida dele, mas ele não quis”, conta.
Zé viveu numa época em que não havia carro nem televisão.
Viu o manguezal sendo aterrado e os navios minguando com o impulso rodoviário
da década de 50. Enquanto Aracaju é tomada por edifícios e shopping centers que
vão transformando os horizontes da cidade, Zé Peixe ainda ensina aos sobrinhos
e aos filhos destes os mistérios do rio e do mar. Dizem que o mar não estará
para peixe em algumas décadas. Enquanto isso não acontecer, Zé Peixe continuará
nadando por lá. E como sempre, ao emergir do mar, fará um pequeno sinal na testa,
agradecendo por mais um dia na água.
Texto reproduzido do site: portosma.com.br
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