Publicado originalmente no site do Portal INFONET, em 8 de
julho de 2020
Amaral Cavalcante, a vida lhe quer bem!
Por Lúcio Prado (Blog Infonet)
Amaral Cavalcante, que já sofria de insuficiência renal
crônica, não resistiu aos novos tempos, no isolamento imposto pela pandemia.
Não sei se vitimado pelo vírus ou pela solidão! Difícil imaginar ele em
quarentena, apesar de que nos últimos anos tenha passado boa parte do tempo
recolhido no seu templo da praia, entre plantas, quadros e livros. Resgatado
pela Academia Sergipana de Letras e pelo comando da revista Cumbica, da qual
era editor-chefe e que a tornou um modelo de publicação para todo o país,
Amaral sempre foi um lobo solitário, mergulhado no âmago da sua inteligência
profunda e nas contradições da vida. De caráter afirmativo e verdadeiro, dizia
o que pensava e por isso chegou a incomodar muita gente, mas a vida lhe queria
bem, apesar dos descuidos que tinha com a vida. Coisa de poeta?
Amaral Cavalcante era da mesma idade do meu irmão Marcos e
juntos eles revolucionaram a pacata Itaporanga da década de 50/60. Promoviam
jograis literários, rodavam filmes, concursos de miss, para prestigiar as
mocinhas da cidade, dos quais eram os organizadores e jurados (ele pegava as
medidas do busto e o mano Marcos a dos quadris) e outras peraltices da adolescência.
O velho casarão da família Dias era tipo um clube social da cidade, para
sessões literárias e culturais e Amaral por lá sempre despontava, com sua
inteligência e irreverência, brotando aos turbilhões. E eu, criança de calça
curta, ficava com outros meninos da mesma idade, sentado em círculo, extasiado
e alegre com todas aquelas manifestações. Mas a diferença de idade entre nós na
época era grande, coisa de uns 12 anos e todas aquelas reminiscências ficaram
para trás.
Do seu passado, Amaral evoca singela lembrança. “Entre as
vastas, mais fugidias margens da memória, as cândidas molecagens nos poções do
Vaza-Barris, em Itaporanga d’Ajuda, nadam, pescam siris ovados, camarões
espertos. Coisas que o jereré da vida já não nos permite achar, nem sob o lodoso
mangue desta cidade Capital – onde vim morar – nem nas gôndolas esquálidas dos
seus supermercados. O privilégio da cidade era um rio habitando os quintais. O
Vaza Barris cortava respeitoso as trilhas domésticas, como um inquieto
horizonte de caudolosas possibilidades. Ele levaria às distâncias do mar a
inquietude dos meninos, o zuadento thi-bum dos nossos pulos mortais, levando,
lavando os sonhos mais pueris da meninada. Enquanto isso, ao cimo da ladeira do
Sapé, o trem de ferro – outro rio a serviço das distâncias – enchia de carvão e
fumaça o sonâmbulo destino da cidade. Um dia, todos nós estaríamos longe dali.
Como seria o mundo além daqueles rios? Era ela, então, uma pequenina aldeia
entre rios, ela mesmo um córrego fiel de silêncios familiares. Tão silenciosa
que se podia ouvir nas tardes modorrentas, o alarido das crianças aos sustos e
imprecações, provando em acrobáticos mergulhos os seus rituais de incipiente
coragem e intrepidez.
O pai de Marcos, o seu Tonico (Antônio Conde Dias) era um
grande cronista católico. Escrevia na A Cruzada. Era afável, bem humorado e
inteligente. Permitiu que a casa dele se tornasse uma espécie de centro
cultural, onde a meninada de Itaporanga podia ler jornais e revistas
importantes, o Cruzeiro, Vida Doméstica, inclusive as femininas, de moda, como
Burda e Marie Claire, assinadas por Dona Natália e, de vez em quando, nos
concedia o beneplácito da sua opinião sobre a nossa incipiente literatura.
Itaporanga
permanece ainda assim, tão querida quanto indelével na memória, mas
irreversivelmente aquática: será sempre um rio correndo em priscas eras, onde
permanecem submersas as nossas armadilhas jererés.”
Anos depois, em Aracaju, nos reencontramos, dessa vez já
adultos, ele envolvido em várias ações como agente cultural profícuo. Marcos
entrou na Medicina e os dois nunca mais voltaram a se encontrar de forma
regular, um ou outro, aqui ou acolá. Foi a minha vez. O surgimento do Madrigal
de Sergipe, organizado pelo maestro Paulo César Prado, deu a oportunidade de reencontrar Amaral com
seu vozeirão afinado de barítono. Com ele, mais Durval e Clóvis, integrávamos o
naipe dos barítonos. Foi um tempo inesquecível, com os ensaios aos sábados no
Conservatório de Música. O Madrigal de Paulo César fez sucesso com várias apresentações
em Sergipe, no Festival de Arte de São Cristóvão e em outros estados na década
de 70. Foi a partir daí que passei a ter mais contato com Amaral.
Nos verões da cidade formávamos uma confraria eventual,
graças ao elo Armando Rollemberg (Armandinho) e Bosco Mendonça, que nos unia
pela música, pela poesia e, podemos dizer assim, pela peraltice. Num desses
encontros, ele colocou no papel uma singela prosa poética, denominada China
Querida. Assim ele se expressou:
“Chego em casa ainda com um pé nas nuvens e o outro no
chinelo, arrastando histórias, levantando na poeira de outros tempos a memória
de grandes amigos. Não sei por onde é melhor firmar o passo: se com o pé na
escala sideral do bem querer que esta noite nos trouxe ou mais humano, na
vereda fortuita dos gozos terrenos, digamos assim, da alma escancarada.
Ai de mim,
escancarado na imensidão desses mundos, descompassado que sou e tão
atrapalhado, se não me valesse a sua tranquilidade terrena – querida China – e
a loucura santa do seu marido Bosco, este sim, guardião de antigas maluquices e
amigo sempre, graças a Deus pra caralho.
Você, mulher, viu Armandinho Rollemberg se desfazer bonito
de amor como eu vi, quando Adriana cantou terna e desassombrada? Viu o olho
dele soltando estrelinhas de São João? Durval, ninando o filho temporão, tão
suave pai se abrindo em confissões? Viu iluminar-se como fogos de artifício, a
voz de Lúcio Prado construindo guirlandas no ar e papoucadas, lindas, em
derramadas pirotecnias? Viu, mulher?
Percebeu a firmeza do Comandante acostumado a perscrutar horizontes, viu
como ele é pousado e sereno? Viajou no teclado daquele menino, ofereceu ao seu
deslumbramento à mesa posta perfeita, ao vinho melhor nos aquecendo, rubras
quenturas de amor incendiadas? Raramente se recebe assim a nós, as visitas de
outrora.
Anos depois, Amaral chega à Academia de Letras, com toda a
sua irreverencia, numa linda festa de possee e discursos antológicos de Marcelo
Deda, que fez o seu panegírico e do próprio recipiendário. No entanto, absorvido por outras atividades
que tomavam muito o seu tempo, pouco frequentava a Academia. Lutava pra editar
com regularidade o seu “Folha da Praia”.
Anos depois, em 2016, abria-se vaga para a Cadeira 36, com a
morte do professor Acrísio Torres. Comecei a conversar com cada acadêmico sobre a minha pretensão de
sucedê-lo e fui pessoalmente à casa de Amaral, na Atalaia, na certeza de obter
o apoio dele. Para minha surpresa, disse que não me daria o voto porque já
havia se comprometido com outro candidato. Saí triste, decepcionado, tinha como
certo o voto dele, por tudo que já havia relatado acima. Na véspera do dia da
sessão, que aconteceria na segunda-feira, estava com a família terminando de
almoçar no Restaurante Carro de Bois, quando o telefone toca. Era ele. “Dá pra
você passar aqui em casa hoje à noite? De pronto, respondi: passo, mas só se
for agora, estou aqui pertinho…Imaginei o que poderia ser. Por via das dúvidas,
não queria deixar pra noite. Ele estava à porta da casa com um envelope na mão.
“Fiz uma viagem no tempo, lembrei de seu pai e de sua mãe e, principalmente de
Marcos”, e me entregou o envelope que identifiquei na hora. Abracei-lhe a
sorrir e ele correspondeu com um sorriso maroto. No dia seguinte, em eleição
bem disputada, fui aceito para a Academia com apenas dois votos de diferença…!
Depois desse episódio, ele esteve na minha posse na Cadeira
36 da Academia, um privilégio para mim, depois nos encontramos algumas vezes na
Edise, a cada lançamento de uma nova edição da Cumbuca, que cheguei a colaborar
atendendo convite dele, e por último no lançamento, na Galeria Mário Brito, do
seu livro A vida me quer bem, cuja leitura foi meteórica e deslumbrante!
Depois, nunca mais o vi! Ficou o vazio! Ficou agora o silêncio do poeta!
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