Luciano Correia, Jorge Carvalho, Antonio Passos e Amaral no
Programa Contraponto, que foi da TV Caju à TV Aperipê
Publicado originalmente no site JLPOLÍTICA, em 8 de julho de
2020
Opinião - Si el poeta eres tú*
Por Luciano Correia * (Coluna Aparte)
Essa desgraçada pandemia, mais os afazeres que nunca me
deixam e a rotina do poeta Amaral Cavalcante nas sessões de hemodiálise num
hospital acabaram por me afastar do convívio dele.
Não sei como ele vinha encarando esses últimos meses em que,
além da sombra da morte que ronda a todos, e em particular nós, brasileiros, o
prenúncio de sua própria morte já se desenhava.
Há cerca de um mês despachei para sua casa um pesado pacote
com dezenas de filmes e livros raros que, antes de propiciar seu próprio deleite,
interessava especialmente a mim o resultado de seu olhar luxuoso sobre tais
obras.
Filmes que não se vê por aqui nem nos Netflix dessa cultura
pasteurizada, e livros que nos tocam nessa quadra da vida, na qual a
perspectiva da morte é cada vez mais presente em pensamentos e palavras.
Dias antes, por telefone, constatei pela primeira vez no
poeta um cansaço com a vida, o desânimo dos que estão saturados com o próprio
calvário. Fiquei muito triste em ver aquele vulcão incontrolável, em vez de
disparar sentenças e impropérios contra desafetos, ou engatar sua sonora
gargalhada, reclamar, triste e soturno, da falta de ânimo para os papos e
vinhos, nosso principal programa em décadas.
Talvez tivesse razão ele, sabedor de tantas alegrias e da
história comum que escrevemos, nós e ele. Nós, vale dizer, foram os
privilegiados que, como ele dizia, privaram da intimidade de sua cozinha. Foram
milhares, quiçá milhares e milhares, as vezes em que invadi sua casa inacabada
na rua jornalista Paulo Costa, carregando vinhos, cervejas e uma renca de
amigos, como Sales Neto, Cauê, Rian Santos, Antônio Passos, Gilvan Manoel,
Tonholeite e outros menos habituais.
Muitas vezes ele fingia que não queria aquela horda bárbara
nos horários mais impróprios (leia-se: qualquer hora do dia ou da noite).
Olhava pra gente com cara de zanga, mas deixando uma porta aberta para a farra:
“E é?”. É poeta, já estamos na cozinha, pegue os copos. E pronto, seu sossego
virava festa.
Às vezes acordávamos o poeta com gritos, chamados
desaforados para um tipo tão carrasquento e de curtíssimo pavio. Amaral era,
como eu brincava, o melhor mau humor da cidade. Isso porque, insultado, ou se
achando assim, devolvia inicialmente com urros verbais, mas logo sua fina
ironia, o humor cortante, obedeciam ao comando de sua rara inteligência e
generosidade, que destruíam os argumentos contrários.
E, no final, ainda sobrava uma doçura que só ele sabia
escavar, do fundo de sua aparente brutalidade. Assisti inúmeras dessas refregas
ao longo da vida, desde as coisas simples do dia a dia, em brigas que acabavam
em beijos no adversário, ou no campo intelectual, como da vez que brigamos, eu
e ele, com Joel Silveira.
Guardo até hoje o bilhete do Víbora, com timbre no canto
superior da lauda, dizendo, sobre uma furiosa nota que eu publicara na Folha da
Praia: “você ainda vai engolir esta merda”. Engolimos, eu e Amaral, muitos
desaforos dos que se sentiram atingidos por nossa verve destrambelhada.
Mas, seguros de que estávamos do lado certo, exercíamos tão
somente nossa loucura santa. Misturo-me um pouco num texto sobre Amaral porque
minha vida sempre foi misturada a ele, meu pai profissional, ao lado de outro
também saudoso, o beat sergipano Fernando Sávio.
Foi no longínquo 1982, quando a Folha da Praia contava um
aninho, depois de ler uma crônica minha, que ele me convidou para escrever no
jornal. Ainda estudante de Jornalismo na UFBA, passei a ser colaborador daquele
alternativo vibrante, que revolucionou o jornalismo impresso sergipano,
sacudindo a poeira da caretice, retratando nas suas páginas a juventude dourada
que desfilava na Praia dos Artistas naqueles verões da abertura, mas sem se
descuidar de um papel político, abrindo espaço para centenas de colaboradores
de oposição, dos diferentes matizes da esquerda. Era o nosso Pasquim, sem nada
a dever ao semanário carioca.
A Folha, nossa bruta FDP, relevou talentos, influenciou a
vida sergipana e ganhou respeito, dos extratos do poder local ao melhor (e
pior) bas-fond aracajuano. No começo dos anos 2000, concebi e apresentei um
programa na extinta TV Caju, o Contraponto, uma deliciosa conversa semanal que
tinha como enunciado “o contraponto de tudo por quem não é especialista em
nada”.
Eu, editor e âncora, suava frio e passava vergonhas semanais
para segurar aquele touro descontrolado, ao vivo, sem cortes, botando em risco
a própria continuidade de um programa irreverente e fora dos padrões locais.
Nas suas falas, Amaral jorrava vulcões em frases, adjetivos e muito
frequentemente nos interrompia, incluindo o apresentador, oferecendo diante do
público seus carões e queixas. Das vezes em que trabalho e diversão eram a
mesma coisa. Era um espetáculo, que comemorávamos depois em longas rodadas na
sua cozinha, sem comidinhas ou tira-gostos, só vinhos e cervejas rolando até o
dia amanhecer.
Em 1988, quando fui embora de Aracaju para Maringá, no
Paraná, ele fez um bota fora pra mim na lendária casa da rua Luiz Chagas, na
Atalaia, que reuniu a fina flor da cultura, da política e dos alternativos
aracajuanos, incluindo Joel Silveira, já “de bem” com ele e comigo.
Foi nesta mesma casa que ele recebia artistas que vinham se
apresentar em Aracaju, como Jorge Mautner, Moreira da Silva e as meninas do
ballet Stagium. Essas últimas, depois de uma apresentação no FASC, ao chegarem
na casinha da Atalaia deixaram encantado o compositor Nelson Cavaquinho,
maravilhado com a energia e a sensualidade daquelas meninas lindas, um cruzar e
descruzar de pernas que botaram o velho Nelson nervoso e “saliente” para os
lados delas.
Depois que fui embora de Aracaju mais uma vez, por mais de
cinco anos, entre o Rio Grande do Sul e a Espanha, nossos encontros ficaram
esparsos, mas na volta, comandando a Fundação Aperipê, ressuscitei o
Contraponto na grade de programação da TV, dessa vez sem minha participação,
numa formação que incluía os “originais” Carlos Cauê e Antônio Passos, mais
Jorge Carvalho, eventual apresentador nas minhas ausências.
Nessa época, Amaral já comandava na Segrase o interessante
projeto de revista chamado Cumbuca, publicação que foi seu último mimo,
refletindo nas suas páginas a diversidade vigorosa e alegre do editor. Na mesma
Segrase, nos encontrávamos com frequência nas reuniões do seu Conselho
Editorial, que integrei junto com o próprio Jorge Carvalho, João Augusto Gama,
o juiz Anselmo Oliveira, Jussara Jacintho e Ricardo Lacerda.
Reuniões de ricos debates sobre literatura e história,
temperadas com os trovejos curiosos do conselheiro Amaral, ora se derramando em
amores, ora em ácidas considerações. Mais um momento em que trabalho e festa
eram a mesma coisa, graças ao espírito luminoso de uma figura que paralisava os
ambientes com um jeito peculiar de ser e de estar no mundo. É este o meu poeta
Amaral Cavalcante que agora me faltará para sempre. * “Si el poeta eres tú” é
uma canção de Pablo Milanés e que sempre que ouvia, lembrava de Amaral.
* É jornalista e começou sua carreira profissional
escrevendo na Folha da Praia.
Texto e imagem reproduzidos do site: jlpolitica.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário