domingo, 13 de novembro de 2022

'Que a terra lhe seja leve!', por Antonio Samarone

Publicado originalmente no Facebook/Antonio Samarone, 12 de novembro de 2022

Que a terra lhe seja leve! 
Por Antonio Samarone*

A velhice chegou para o professor Antunes. Não adiantou esconder a idade, pintar os cabelos, fazer plásticas, comida natural, Yoga, meditação, não sair das academias,  se achar com o “espírito  Jovem”. 

O choque foi grande, Antunes não se preparou para a morte e ela bateu a sua porta sem anunciar. O espelho começou mostra-lhe as rugas, pelancas e olhos fundos. Uma dor chata nas costas, tosse e expectoração sanguinolenta. 

Procurou um amigo médico, colega da noite, e a suspeita foi terrível: “Antunes, tudo indica que o seu caso é grave, procure um oncologista.” E não deu outra, a biopsia constatou: câncer de pulmão. 

Antunes desabou emocionalmente. Sempre soube que se morria, mas nunca suspeitou que fosse com ele. Não gostava nem de tocar nesse assunto.

Antunes sonhava em morrer de repente, para não sofrer e nem dar trabalho aos outros. Ocorre que somente 10% dos humanos recebem essa dádiva. Os 90% restante, morrem sofrendo e dando trabalho, muito trabalho. 

O professor Antunes ensinava matemática na rede pública. Nunca casou, envelheceu borboletão. Não foi o que você pensou, Antunes gostava de gente,  sua relação de amigos, ex alunos, colegas de profissão era numerosa.

Antunes só não era chegado aos parentes, gente pobre, que ele antevia apenas interesses e falsidades. Queriam se aproveitar da sua boa vida, apartamento pago, nome limpo na praça. Acho até que tinha um carrinho de passeio. 

Antunes morava no Augusto Franco, um bairro perto de tudo e cheio de atrativos sociais. Eu conheci o professor Antunes no bar de Zé Buraqueiro, na feira do Augusto Franco. Torcedor do Confiança e do Vasco.

Antunes pertencia a legião dos festeiros superficiais, um homem de baladas. A farra não precisa de motivação, basta o tempo livre. Sempre seguiu atrás de qualquer trio elétrico.

Antunes não sabia que morrer no Brasil era um castigo duplo. A assistência aos pacientes terminais é uma das piores do mundo, agrava os sofrimentos. Mesmo o que sujeito tenha como comprar os serviços, eles não são bons. 

A fralda aproxima os destinos entre ricos e pobres.

O maior sofrimento de Antunes foram os 97 dias agonizando, sofrendo, sem esperança, só esperando a hora. Antunes foi internado para morrer num hospital mais ou menos. Com prestigio e apadrinhamento, conseguiu um leito pago pelo IPES. 

Entretanto, sem minimizar o sofrimento físico, o emocional foi maior: Antunes não recebeu nenhuma visita nos 97 dias de martírio, ninguém teve tempo de visitá-lo. Nem mesmos aqueles chatos, que vão visitar só para sair alarmando que o acamado está mau, sair dizendo o fulano morre a qualquer hora.

Antunes, por coincidência, morreu no sábado do Pré-Caju.

Antunes não recebeu um padre, um pastor, uma freira, parentes (esses ele não queria), amigos, nada! Antunes morreu só, dando muito trabalho e não recebendo os cuidados merecidos por qualquer cristão.

Visitar os doentes é uma obrigação cristã esquecida, quase em desuso! Só os moribundos importantes conseguem essa graça. Parece que a Pandemia afastou as visitas. 

No velório até que apareceu gente, mas de nada adiantava. Os comentários eram unânimes: morreu tão jovem! Na verdade, Antunes parecia jovem, mas já se aproximava dos 70 anos. Não se soube de nenhuma lágrima, não foi pranteado. 

Antunes foi sepultado no São João Batista, numa tarde calorenta. Quando o coveiro fechou a sepultura, com a massa do cimento ainda mole, perguntou o nome completo do defunto para registrar, ninguém sabia ao certo, uns diziam que era Antunes Santos outros que era Antunes Souza.

Na dúvida, ficou registrado: “aqui jaz professor Antunes.” 

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* Antonio Samarone, é médico sanitarista

Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Antonio Samarone