quarta-feira, 17 de abril de 2019

O crime mais rumoroso de Aracaju


Publicado originalmente no site do Portal Infonet, em 14 de abril de 2019

O crime mais rumoroso de Aracaju
Por Marcos Cardoso (Blog Infonet) 

O Brasil é um dos países mais violentos e Sergipe não escapa da epidemia de homicídios que aterroriza a todos. A outrora pacata Aracaju é hoje até citada como uma das cidades mais violentas do mundo, o que é contestado pelas autoridades.

Mas no passado aconteceram crimes que marcaram a história da cidade. O caso mais famoso foi o assassinato do médico e político Carlos Firpo, que ficou conhecido como o Crime da Rua Campos. Já há mais de 50 anos, no dia 25 de maio de 1958, o médico foi morto a facada enquanto dormia, no quarto de sua casa. O crime jamais foi inteiramente esclarecido.

“O impacto que provocou na sociedade foi superestimado sensacionalmente pela imprensa escrita e falada em proporções jamais vistas em Sergipe”, recorda o historiador Ibarê Dantas (“Os Partidos Políticos em Sergipe: 1889-1964”).

“Embora hoje se acredite que o homicídio foi motivado por razões passionais, as explorações desenvolvidas em torno do caso em pleno ano eleitoral foram de tal ordem que nunca ficou inteiramente esclarecido, permanecendo como um exemplo daqueles tempos tumultuados do primeiro governo udenista” de Leandro Maynard Maciel.

Vinculado à UDN, diretor do Hospital Santa Isabel, Carlos Firpo era apontado como provável companheiro de chapa de Heribaldo Dantas Vieira, que pleiteava candidatar-se ao governo do Estado. Seu desejo de candidatar-se contrariava interesses do seu partido.

Insinuou-se na época que o também prestigioso médico e então vice-governador José Machado de Souza teria relação com o assassinato, informação que foi prontamente rechaçada pelas demais autoridades estaduais, que chagaram a fazer uma manifestação de solidariedade e desagravo na porta de sua casa, na rua Pacatuba. Dr. Machado era amigo de Carlos Firpo.

Pires Wynne (“História de Sergipe: 1930-1972”) cita o caso de forma parcial, com o intuito de fazer a defesa do vice-governador, e transcreve um capítulo do livro Sergipe por um Óculo, do general José Lopes Bragança, que tampouco é imparcial e tenta tão-somente provar a inocência da viúva, Milena, e do então coronel da Aeronáutica Afonso Ferreira Lima.

Ela é filha do imigrante italiano Nicola Mandarino, sobre quem, pouco mais de uma década antes do crime, havia se abatido outra desgraça em Aracaju, quando o acusaram — injustamente, pelo que se sabe — de colaborar com os alemães que bombardearam navios na costa de Sergipe. Teve a casa depredada e quase foi linchado.

“No vandalismo, que então se praticou, todo o enxoval de Milena foi perdido. Para quem fosse supersticioso, isso seria considerado mau augúrio para o casamento”, escreveu o general Bragança.

O baiano Afonsinho, assim carinhosamente conhecido, era amigo e frequentador da casa dos Firpo. Ele foi do Grupo de Aviação de Caça, era boa pinta e brilhante profissionalmente. Chegou a ser um dos oficiais aviadores da Presidência da República, no governo João Goulart. Foi caçado pelo Ato Institucional número 1, após o 31 de março de 1964, sendo transferido compulsoriamente para a reserva, já como brigadeiro. É falecido.

Na noite do crime, a vítima estava só no seu quarto. Dona Milena dormia com as duas filhas, Julieta e Maria da Graça, pois uma delas estaria doente. O sogro Nicola e a doméstica Gilena também estavam na casa. O fio do telefone havia sido cortado criminosamente. Após as investigações coordenadas pelo próprio Leandro Maciel, a polícia mandou prender dois indivíduos que tinham sido indiscretos em suas conversas perante um motorista de praça que os transportava para a cidade de Paulo Afonso, terra natal de Afonsinho.

Um dos detidos, o magarefe José Euclides Timóteo de Lima, que na noite do crime teria ficado de atalaia na esquina da rua Campos com Dom José Thomás, foi espancado até a morte num terreno baldio da Jabutiana, após finalmente ter incriminado Afonsinho.

Foi torturado pelos policiais de vulgo Alemão, Zé Rosendo e Carniceiro, sob a “direção pessoal do secretário do Interior e Justiça, Dr. Heribaldo Dantas Vieira, atual senador por Sergipe, com a presença do atual deputado federal João de Seixas Dória, do secretário de Segurança Dr. Antônio Machado e do Dr. Humberto Napolioni Mandarino, cunhado do Dr. Firpo”, segundo relatou o general Bragança, no seu livro editado em Belo Horizonte poucos anos depois do crime.

“Apesar de terem conseguido essa confissão feita no estertor da morte, foi pedida a prisão preventiva para todos os que ocupavam a residência do Carlos Firpo no dia do seu assassinato, exceto suas filhas menores”.

Dona Milena passou dois anos no reformatório penal, após fazer uma confissão que também teria sido forjada. Ela teria confessado um suposto romance com o coronel aviador. Afirmando depois que não disse o que constava no depoimento, foi absolvida em juízo. Sua assinatura no depoimento a Heribaldo Vieira, inclusive, teria sido falsificada.

O clamor que se criou contra ela também provocou piedade. O poeta Antônio Garcia Filho compôs uma música em sua homenagem, “Injustiçada”, que foi gravada por Alcides Gerardi.

O outro preso em Paulo Afonso, José Pereira dos Santos, o Pereirinha, acabou sendo condenado a 20 anos de reclusão como autor material do crime. Ele teria esfaqueado o médico Carlos Firpo. Mas o verdadeiro mandante, que supostamente teria sido Afonsinho, até hoje permanece sob mistério. Suspeita-se que um cunhado dele teria contratado os assassinos.

Quase 51 anos depois o crime permanece um mistério.

Texto e imagem reproduzidos do site: infonet.com.br

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Por que não se fala em Manoel Bomfim?


Publicado originalmente no site Expressão Sergipana, em 01 de abril de 2019

Por que não se fala em Manoel Bomfim? 

Documentário busca dar visibilidade à vida e obra de um dos principais pensadores brasileiros

De Paulo Victor Melo 

“Uma voz que ousava dizer o indizível”, “um pensador que não temia pensar o impensável”, “o rebelde esquecido”. Com essas palavras, o sociólogo Ronaldo Conde Aguiar referiu-se a Manoel Bomfim, um dos intelectuais mais importantes para a constituição da base, corpo e alma do pensamento social brasileiro.

Com um trabalho sobre a vida e obra de Bomfim, Conde Aguiar recebeu, em 1999, o prêmio de melhor tese de doutorado no I Concurso Brasileiro de Obras Científicas da Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), demonstrando a importância da contribuição de Bomfim para o entendimento das raízes do Brasil, para a explicação da realidade brasileira e para a compreensão da relação do país com a América Latina.

Mas se o legado de Manoel Bomfim cumpre papel determinante para o diagnóstico e as buscas de saídas democráticas sobre/para o Brasil, por que esse autor tornou-se esquecido ao longo do tempo? Essa é uma inquietação presente há algumas décadas na intelectualidade brasileira, desde que Darcy Ribeiro, na metade dos anos 1980, o classificou como “o pensador mais original da América Latina”. Exemplos disso são os textos escritos por Gilson Dantas, em 1997, em que pergunta por quais motivos Manoel Bomfim fica à margem dos livros escolares, e de Aluízio Alves Filho, que afirma ser Bomfim o “ensaísta esquecido”.

Passadas mais de duas décadas dos questionamentos de Conde Aguiar, Gilson Dantas e Aluízio Filho, o cineasta e documentarista argentino, radicado há anos no Brasil, Carlos Pronzato renova as inquietações ao produzir o documentário “Por que não se fala em Manoel Bomfim?”

Com o título não deixando dúvidas sobre os objetivos da obra audiovisual, Pronzato acredita que, embora esquecido, Bomfim permanece atual, mesmo após aproximadamente 87 anos da sua morte. “A voz deste ‘rebelde esquecido’, mesmo enfraquecida, chegou até nós por meio de várias reverberações, e em uma contemporaneidade profundamente marcada pela corrupção política, pela descrença generalizada em várias instituições e por inúmeras mazelas mal resolvidas no plano social, o conteúdo das reflexões do intelectual sergipano torna-se atual e necessário, enquanto instrumento de analise para pensarmos o processo político, bem como as relações entre estado e sociedade no país”, afirma.

Uma das principais hipóteses sobre o “esquecimento” de Manoel Bomfim, abordada no documentário, diz respeito ao caráter revolucionário das suas ideias, tendo sido, por exemplo, uma das mais expressivas vozes dissonantes às teorias racistas de branqueamento da população como solução para os problemas do país, muito em voga à época. Bomfim, no caminho oposto, afirmava que o problema fundamental era uma espécie de “parasitismo social” das elites e defendia a pluralidade étnica como um potencializador do desenvolvimento do país, sendo a educação o caminho para a emancipação das classes populares.

Com lançamento previsto para o início de abril, próximo a data da morte de Manoel Bomfim (21 de abril), o documentário é construído a partir de pesquisa histórica e entrevistas com pesquisadores que produziram e continuam a produzir materiais sobre a obra de Bomfim, como Aluízio Alves Filho, citado anteriormente; Rebeca Gontijo, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autora do livro “Manoel Bomfim”; José Vieira da Cruz, professor da Universidade Federal de Alagoas, e co-organizador do livro “Manoel Bomfim e a América Latina: a dialética entre o passado e o presente”; e Ricardo Sequeira Bechelli, que escreveu “Nacionalismos anti-racistas: Manoel Bomfim e Manuel Gonzalez Prada”.

Entendendo que a obra de Bomfim está conectada e influenciada diretamente pelo chão que o moldou, o documentário conta com depoimentos de diversos intelectuais, estudiosos e ativistas de Sergipe, estado natal de Bomfim, a exemplo de Terezinha Oliva, historiadora e professora emérita da Universidade Federal de Sergipe; Fernando Sá e Romero Venâncio, respectivamente professores de História e Filosofia da mesma instituição; Aglaé Fontes, integrante da Academia Sergipana de Letras e pesquisadora da cultura sergipana; Ana Lúcia Vieira Menezes, professora e ex-deputada estadual.

Um inquieto de múltiplas áreas

Nascido em Aracaju, em 8 de agosto de 1868, Manoel Bomfim foi um intelectual com contribuição destacada em diversas áreas do conhecimento. Médico, com estudos em Salvador e no Rio de Janeiro; especialista em Psicologia, com curso na França iluminista; sociólogo; historiador. Em todos os campos de atuação, Bomfim se caracterizou pelo rigor acadêmico aliado à contribuição social das suas pesquisas e trabalhos, confirmando-o como um intelectual atento aos problemas do seu tempo e preocupado em contribuir no desenvolvimento do país.

Na área da educação, Bomfim foi também fundamental na defesa de uma educação pública democrática e popular. Convidado pelo então prefeito do Rio de Janeiro, Francisco Werneck de Almeida, em 1896, Bomfim assumiu o cargo de sub-diretor do Pedagogium, instituição criada seis anos antes para supervisionar as atividades pedagógicas do país à época. Naquele período, pela função que desempenhou, Bomfim formulou diversas iniciativas de reformas e melhorias no ensino público, sendo um crítico do distanciamento entre os planos governistas para a área e a realidade deficitária da educação brasileira. Com o mesmo empenho transformador, Bomfim ocupou, por duas vezes, o cargo de diretor de Instrução Pública no antigo Distrito Federal, entre os anos de 1895 e 1900 e entre 1905 e 1907.

Bomfim buscou denunciar e refletir sobre os problemas do país também via atuação na imprensa, tendo sido editor e articulista de diversos veículos de comunicação, como O Correio do Povo, O Comércio, Ilustração Brasileira, Notícia, Tribuna e O País, além de periódicos especializados em educação, como Revista Pedagógica de Educação e Ensino e Revista Pedagogium.

Demonstrando a sua inquietação com a desigualdade estrutural do Brasil, Bomfim participou também da política nacional, ocupando o cargo de Deputado Federal no lugar de Oliveira Valladão, com um mandato de pouco mais de um ano, entre agosto de 1907 e dezembro de 1908. Candidatou-se à reeleição, mas sem êxito.

Ligada ao Partido Operário Indepedente, Bomfim participou da criação da Fundação da Universidade Popular de Ensino Livre, instituição centrada na educação de jovens e adultos, que representou um marco na luta por um modelo de educação popular no Brasil.

Em termos de produção intelectual e literária, Manoel Bomfim foi, como já dito, dos principais autores sobre a questão do desenvolvimento social e econômico do Brasil e da América Latina, sempre com uma perspectiva crítica e propositiva. Dentre as suas obras, destacam-se: América Latina: males de origem; O Brasil na América: caracterização da formação brasileira; O Brasil Nação: realidade da soberania brasileira; O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação política; Lições e Leituras para o primeiro ano; Crianças e Homens.

Cinema militante

Da mesma forma que a obra de Manoel Bomfim, o cinema de Carlos Pronzato, diretor do documentário “Por que não se fala em Manoel Bomfim?”, coloca o seu fazer profissional a serviço da memória coletiva transformação da sociedade.

Os seus mais de 70 documentários sobre personagens e momentos da história do Brasil e da América Latina são a prova disso, a exemplo de: “O Panelaço, a rebelião argentina”; “Bolívia, a guerra do gás”; “, isto aqui vai virar o Chile, escolas ocupadas em São Paulo”; “Terceirização, a bomba relógio”; “Ocupa Tudo, Escolas Ocupadas no Paraná”; “A Escola Toma Partido, uma resposta ao Projeto de Lei Escola sem Partido”; “1917, a Greve Geral”; “1968, a Greve de Contagem, primeira greve durante a ditadura militar”; “Mestre Moa do Katendê, a primeira vítima”; “A Revolta do Buzu”, “Carabina M2, uma arma americana, Che na Bolívia”, “Madres de Plaza de Mayo, verdade, memória e justiça”, “Marighella, quem samba fica, quem não samba vai embora”, “Pinheirinho, tiraram minha casa, tiraram minha vida”, “Mapuches, um povo contra o Estado”, “A partir de agora, as Jornadas de Junho 2013”, “Dívida Pública Brasileira, a Soberania na Corda Bamba”; “José Calasans, tradutor do Sertão”; dentre outros.

A quantidade e relevância social dos trabalhos de Pronzato – que é também diretor teatral, escritor e poeta, já lhe renderam homenagens do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO), além dos prêmios Roberto Rossellini, em 2009, na Itália, e Liberdade de Imprensa, pelo jornal Tribuna da Imprensa Sindical, do Rio de Janeiro, em 2017.

Ao mesmo tempo em que finaliza “Por que não se fala em Manoel Bomfim?”, Pronzato está prestes a lançar também o documentário “Lama: o crime VALE no Brasil”, sobre o crime ambiental na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais.

Num cenário de flagrantes restrições à liberdade de expressão, de criminalização das lutas populares e de retirada de direitos, a obra de Carlos Pronzato – assim como a de Manoel Bomfim – se afirma como parte fundamental da resistência democrática. Assim, é possível colaborar financeiramente com as obras do cineasta, através de depósito na seguinte conta bancária: Banco do Brasil, agência 0346-8, conta corrente: 222.567-0.

* Paulo Victor Melo - Jornalista, mestre e doutorando em Comunicação e Política. Tem experiência com jornalismo sindical, políticas de comunicação na América Latina, mídias públicas e comunicação e direitos humanos

Texto e imagem reproduzidos do site: expressaosergipana.com.br

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Artigo de Clara Angélica Porto

Foto reproduzida do Facebook/Clara Angélica Porto e postada pelo blog SERGIPE..., 
para ilustrar o presente artigo

Texto publicado originalmente no Facebook/Clara Angelica Porto, em 31 de março de 2019

Em janeiro de 1969, pouco depois do criminoso AI-5, eu era uma jovem universitária. Tinha uma coluna diária na Gazeta de Sergipe chamada Vida Social. Como comecei jornalismo pouco antes de fazer 17 anos, convidada por Ivan Valença, papai e Orlando Dantas conversaram e ficou decidido que eu aceitaria o convite, mas nunca pisaria os pés na redação, onde só tinha homens. E assim foi que me tornei a pequena musa da Gazeta. Todos os dias, por volta das 4 horas, deixava minha coluna no balcão da frente, com Ivan, ou seu Orlando. Ouvia as vozes da redação, do outro lado da parede fina: ‘Ela está aqui!’ Ancelmo Gois, que na época era foca do jornal, encarregava-se de avisar. ‘Ela hoje está de azul... de amarelo...’ Ancelmo ficava olhando pela porta entreaberta que dava acesso à redação. Nino Porto, meu irmão, mandava acabar a saliência. Eu tentava não rir. E seu Orlando me olhava sobre os óculos de leitura com aqueles olhos cor de esmeralda e balbuciava algo inaudível que significava que a coluna estava entregue e está na hora de ir embora. Eu adorava essa corte diária e saia de lá me sentindo linda e querida. Ezequiel Monteiro, que também tinha olhos de esmeralda, passou a deixar pequenos poemas diários no quadro verde de avisos. Seu Orlando respeitava, Ivan curtia muito e não apagavam, para que eu pudesse ler, afinal era poesia de Ezequiel para a musa do jornal. E assim é que todos os dias, eu ganhava uma estrofe amorosa de Ezequiel, que hoje, lamento não ter anotado. Com o passar do tempo, daria um caderno. Aí Ancelmo, além de anunciar somente ‘ela chegou’, anunciava ‘tá lendo’, ‘tá rindo’ ...
Hunald Alencar dizia que eu era a cronista que é notícia. Porque eu fazia teatro, organizava festas com Pedrito Barreto, aprontava em Aracaju. Já o pai dele, Clodoaldo de Alencar, dizia que eu escrevia Vida Socialista, pelo teor político da minha coluna.
O que eu não sabia era que estava no olho dos militares, que acompanhavam de perto a minha vida, sem a admiração dos colegas da Gazeta.
Eu havia sido convidada por Wellington Mangueira para compor como Secretária de Imprensa a chapa para eleição do DCE encabeçada por João Gama. Ganhamos a eleição, o que logo me colocou na lista negra do 28 BC, e passaram a me seguir diuturnamente, sem que eu percebesse. Seu Ursino, Ramos, muito amigo da família, percebeu um Jeep que andava devagar onde quer que eu fosse e ficou desconfiado, mas nada falou, para não me assustar nem a meus pais. Apenas ficou atento e passou a me dar conselhos como nunca sair sozinha de noite.
Em dezembro de 68 fomos veranear na Atalaia Nova, o que foi muito incentivado por seu Ursino, que convenceu papai, que estava relutante, apesar da oferta generosa de Guega (Aglae Fontes), que ofereceu a casa que não iria usar naquele verão.
Em janeiro, atravessei o rio de tó-tó-tó com meu irmão Carlos Henrique, que sempre me acompanhava e cuidava, para vir a Aracaju me matricular na Faculdade. Ao chegarmos na nossa casa da rua S. Cristóvão, fui logo trocar de roupa. Lembro ter escolhido um vestido amarelo que eu gostava muito, e fiz uma trança para domar os cabelos de muita praia e poucos cuidados. Alguém chamou. Eu e Carlos Henrique corremos para o portão de ferro da grande varanda e vimos um senhor careca, moreno alto, que perguntou pela jornalista Clara Angelica. ‘Sou eu, o que deseja?’ O homem disse ‘chame a sua mãe, deve ser ela, você é uma menina’. Retruquei: ‘Não senhor, sou eu mesma. Pode falar’. Então ele me comunicou que eu estava indiciada pelo exército brasileiro e teria que seguir com eles para o 28BC. Carlos Henrique disse que a irmã dele não iria sair sozinha num Jeep com dois homens, que ele estava ali representando meu pai e que eu precisava me matricular na Faculdade. O homem respondeu que eu teria que estar dentro de uma hora no 28BC. Carlos Henrique disse que iria comigo de ônibus e o homem aceitou, dizendo para não ousarmos não ir, pois eles estavam de olho. Seu Ursino, que também morava na rua São Cristóvão, viu o Jeep passar e o seguiu, compreendendo o que estava acontecendo. Foi à Atalaia Nova e avisou meus pais. Papai, que era amigo de infância do General Djenal Tavares de Queiroz, logo telefonou para ele, avisando e pedindo interferência. O General prometeu ajudar.
Fui de ônibus com Carlos Henrique para o 18 do Forte e subimos a então já famosa colina.
Lá chegando, dois homens já me aguardavam e avisaram a meu irmão que eu seria levada para um interrogatório e ele podia ir embora. Carlos Henrique disse que iria esperar por mim e ficou sentado no galpão, enquanto eu seguia com os homens.
Na sala, haviam três homens, um diante de uma máquina de escrever, e mais dois, um dos quais moreno de bigode e que se apresentou a mim como Major Bandeira.
Logo que sentei, de frente ao Major, ele me apontou uma pasta enorme e alta, cheia do que parecia documentos e fotos e perguntou: ‘Sabe o que é isso’? Respondi que não. Ele então iniciou um pequeno discurso de que eu era muito jovem, bonita e inteligente, de boa família e não devia andar com quem não presta. Eu ouvia atenta e calada. O major abriu a pasta e começou a me mostrar fotos onde eu aparecia, ora dançando feliz em festinhas do DCE na faculdade de Química, ora na praia, na piscina da Atlética, comprando maquiagem em A Moda, na faculdade, na posse do DCE. Depois jogava colunas na minha frente, onde eu defendia igualdade social, liberação da mulher; em uma delas eu defendia maternidade para mulheres que queriam ser mães mas não queriam casar; em outra, eu louvava o conhecimento de história e dialética de Wellington Mangueira; em outra, uma crônica sobre o casamento de meu primo Carlos Cruz com Maria Stael. O major pedia o porque de cada coisa. Na crônica de Carlinhos e Stael, eu encerrava falando da felicidade deles e de como era triste que numa sociedade desigual, nem todos pudessem viver momentos lindos como aquele.
Foi aí que o major me ofereceu um cigarro, que aceitei. Um homem veio por trás de mim e deu um tapa no cigarro, antes que eu o tivesse acendido. O cigarro voou longe e meus lábios sangraram um pouco. Fitei o major longamente, calada. Nada disse. Ele não me olhou de volta. E continuou falando como se nada tivesse acontecido. Serviu-me um cafezinho, que deixei ali, na mesa, sem tocar. A um certo momento, não resisti e peguei o café para tomar um gole. Outro tapa fez a xicrinha de plástico voar longe. Dessa vez, atingiu meu dedo mindinho. Um outro homem entrou e falou ao ouvido do major. Não sei quanto tempo havia se passado, algumas horas, pois passamos muito tempo olhando e explicando o dossiê.
A partir desse momento, o major mudou o tom do discurso, e passou a me dar conselhos. Que me limitasse a escrever crônica social, que não falasse de política, muito menos de política estudantil. Que eu era filha de um homem honrado e devia ter cuidado. Chegou até a falar de si e da família e pedir que eu os promovesse no jornal. Eu escutava a tudo calada.
Então ele passou a me perguntar se eu conhecia Wellington, João Gana, Jackson Barreto, Didi Macedo, Alencar e Aglae, uma lista imensa. Eu ia dizendo que sim, que conhecia todos, que Aracaju era uma cidade pequena e todos nos conhecíamos. Ele tentou aprofundar sobre o nível dessas relações e eu, que rapidamente entendi que ele havia recebido um recado favorável para mim (pensei logo em papai e general Djenal), menina de trança com sorriso meigo, desviava e a tudo respondia sem nada dizer. Tornei-me mestra em falar e falar e nada revelar. Sou assim até hoje. Acho que aprendi naquele dia. Ficamos assim horas, ele tentando colher e eu me fazendo de desentendida, fazendo cara de menina.
Foi aí que ele disse que iria me liberar, mas que ficariam de olho. A partir daquele momento, minhas colunas seriam previamente censuradas e só se publicaria o que passasse. Fez uma lista de assuntos que eu não podia escrever.
Quando sai da sala, onde havia entrado umas 9 h da manhã, já eram quase 4 horas da tarde. Encontrei Carlos Henrique sentadinho, a me esperar. Nosso abraço foi intenso.
Voltamos direto para a Atalaia Nova, onde encontramos nossos pais, com seu Ursino ao lado, amigo de verdade é assim. Pediram que eu não falasse sobre o assunto com ninguém, a pedido do general Djenal. Assunto morto, disse papai - é uma ordem!
Com o coração em frangalhos, fui para o quarto finalmente chorar e depois, Carlos Henrique me levou para tomar um banho de mar, que foi curativo e libertador.
Ao chegar na Gazeta para deixar a coluna, seu Orlando, grave, me chamou para uma conversa e disse que não era só eu, todo o jornal estava sob vigilância diária e nem uma palavra seria publicada sem censura prévia. Aconselhou-me que desse um tempo sem falar em política e questões sociais, que me detivesse a assuntos sociais e não socialistas e a assuntos culturais. Foi a época que publiquei muita coisa do movimento hippy que começava nos Estados Unidos, e usava arte como metáfora de mensagens.
Continuei indo varias vezes com Didi Macedo no fusquinha dela, para as imediações da fábrica do Bairro Industrial às 5 da manhã, distribuir panfletos mimeografados e cheirando a álcool, que a turma executiva clandestina fazia nas caladas da noite. Cobríamos os números da placa do fusca de Didi com fita isolante preta, um 0 virava um 8, cada dia uma invenção. Papai me trancou no quarto para eu não ir para o congresso de Ibiuna, eu havia sido convidada por Wellington. Foi Tina no meu lugar.
Também continuei dando as aulas de Wellington nas escolas públicas dos bairros e era Jackson Barreto quem me acompanhava, levava de ônibus. Enquanto eu dava as aulas, ele conversava com os estudantes levando clareza - os dois ensinávamos, eu dentro e ele, fora da sala de aula. Depois Jackson, um cavalheiro, me deixava na porta de casa, exigência de papai, e caminhava para a casa dele na rua de Estância. Fazíamos tudo por Wellington. Amávamos Wellington, que era nosso grande líder e muito nos ensinava.
Nesse mesmo ano, em setembro, conheci o homem que viria a ser meu marido pouco mais de um ano depois.
Ivan Valença um dia escreveu sobre mim, que a repressão me levou a buscar o amor, que acabou me levando para longe.
Mas ficou a marca desse dia. Em todas as minhas memórias de Aracaju, todas lindas, ficou a cara daquele major de bigode, daquele tapa, do gosto de sangue na boca. Ficou o retrato da amargura da ditadura militar no Brasil. O que se passou comigo nada é, comparado aos horrores sofridos por nossos amigos próximos e por milhares de brasileiros.
Não há nada para comemorar.
Ditadura nunca mais!

Texto reproduzido do Facebook/Clara Angelica Porto