domingo, 3 de dezembro de 2023

'10 anos sem Marcelo Déda', por Clóvis Barbosa

Foto reproduzida do Governo de Sergipe e postada pelo blog, pa ilustrar o presente artigo.

Artigo compartilhado do site DESTAQUE NOTÍCIAS, de 3 de dezembro de 2023

10 anos sem Marcelo Déda
Por Clóvis Barbosa*

2 de dezembro de 2013. Não queria me despedir de Déda. Ficaria em casa naquela segunda-feira. O traslado do seu corpo já havia sido feito, e ele estava sendo homenageado pelo povo e autoridades, inclusive a presidente da república, no prédio que ele mandou restaurar, o Palácio Olímpio Campos. Um filme passou pela minha mente. As imagens surgiam como se estivéssemos voltando a trilhar os mesmos caminhos andados em 37 anos de amizade, forjada no amor e nas divergências. Muito carinho de um pelo outro, mas brigas também. Tudo começou no Colégio Atheneu, onde fui dar um curso de história do cinema ao lado de Nilo Jaguar, Djaldino Moreno, Alberto Carvalho e Antônio Jacintho Filho, onde quatro meninos mostraram interesse pelo curso, Déda, Oliveira Júnior, Aragão e Evandro Curvello, quarteto que só andava junto e partilhava dos mesmos interesses culturais. Depois, veio a política, no PT e nos movimentos sociais, a advocacia, no início de sua carreira, à noite, no Baixo Barão, Scooby-Doo, Bar do Vinícius, Gosto Gostoso e tantos outros. De 1990 a 1996, ficamos de mal, embora em 1994 ele recebesse o meu voto, da minha família e amigos na sua candidatura vitoriosa a Deputado Federal. Não nos falávamos. Mas eu sempre falava dele, e ele de mim para amigos comuns.

A noite chegava e minha angústia aumentava cada vez mais. Não, eu tenho que ir ao Palácio Olímpio Campos. Eu tenho que vê-lo pela última vez. Olho seu rosto, dou-lhe um beijo e volto para casa. Uma multidão na praça. Consigo entrar pelos fundos e subo, cambaleante, a escadaria até a sala onde o seu corpo estava estendido. Ao vê-lo, a emoção tomou conta de mim. Choro bastante. Recomponho-me e passo a imaginar o cenário criado pelo poema de Walt Whitman, O Captain! My Captain. Subverto o texto e passo a me exprimir em voz baixa: – Sobre o deque meu capitão jaz, frio e morto tombado, enquanto lá fora as bandeiras do PT tremulam. Pedi-lhe: – Ergue-te, Ó capitão! Meu capitão! A nossa viagem ainda não está finda, Ó capitão! Meu capitão! Ergue-te e ouve os sinos; ergue-te – o clarim garganteia, por ti buquês e grinaldas engalanadas – por ti eles chamam, a massa oscilante volta-lhe suas faces ansiosas; eis capitão! Querido amigo! Este braço sob sua cabeça colocado! – Meu capitão não responde, seus lábios estão pálidos e silentes. Meu querido amigo não sente meu braço, não tem pulso, a vontade ausente.

Lembrei-me do seu aniversário de 50 anos. Fiz um artigo com o mesmo título do poema de Walt Whitman. Ali, eu perquiria que fatores identificariam os homens, a ponto de uni-los mediante laços de afeto? O que levaria alguém a não medir sacrifícios por um amigo e, até mesmo, a definir outrem como tal? Por que nós nos ajuntamos em bandos, grupos, partidos ou tribos, projetando marcas que nos distinguem de outros, em face dos quais não encontraríamos afinidade? Após filtrar, com rigor, ideias que deixei fluir com naturalidade, creio ter chegado a uma razoável conclusão. Segundo elas, três seriam os ingredientes que imantariam os indivíduos, irmanando-os e fazendo deles emergir uma mesma frequência, na forma de acordo com a qual captariam a sonoridade do mundo, ou no modo de enxergar as aflições que nosso coração faz ecoar pelas curvas da vida. Penso que etnia, idioma e similitude de propósitos são os pilares que nos põem no mesmo bloco.

Por isso, emocionei-me com a homenagem que se prestava ao nosso Déda, que estava completando meio século naquele ano de 2010. Que beleza! Nessa fase da vida, o alemão Bach já havia formatado a Arte da fuga e escrito seus mais importantes trabalhos, a exemplo de O cravo bem temperado e da Paixão segundo São Mateus. Quando Bach tinha cinquenta anos, adveio-lhe o filho caçula, que acabou por seguir carreira idêntica à do pai. Naquele dia de festa, 11 de março, nasceu Astor Piazzolla, que, aos cinquenta anos, já produzira seus mais reluzentes tangos (as obras-primas Adiós Nonino e Libertango). Pois é, com apenas cinquenta anos, Déda, artífice da palavra, estilista no trato com a administração pública e regente singular do Estado, já tinha sido, na política, quase tudo que se possa conseguir galgar.

No executivo, só não ocupou a presidência da república, mas foi prefeito da capital de seu Estado (Aracaju), por duas vezes (eleito pela primeira vez aos quarenta anos), e governador de Sergipe, também duas vezes (sempre vencendo no primeiro turno). Já no legislativo, apenas não ocupou uma cadeira de vereador e outra de senador. Mas foi, com menos de trinta anos (em 1986), o deputado estadual mais votado do pleito. Com menos de trinta e cinco anos (1994), elegeu-se deputado federal, com a maior votação do Estado, reelegendo-se em 1998. Para mim, todavia, dois anos, em especial, são marcantes: 1977 e 2000. Em 77, vi, pela primeira vez, o imberbe Déda num curso de cinema no Atheneu, como dito acima. Na época, eu era presidente do Clube de Cinema de Sergipe. Juntamente com barbudos e velhos comunistas, exibi, malgrado percalços e riscos, o “Encouraçado Potemkin”, de Serguey Eisenstein. Com efeito, os riscos advinham do fato de a obra de Eisenstein expor a ditadura do czar. E nós vivíamos uma ditadura. No ano anterior (1976), por exemplo, desencadeara-se a “Operação Cajueiro”, na qual ilustres sergipanos foram presos pelo regime de exceção. Mas o jovem e denodado Déda estava lá, como que, encouraçadamente, peitando a ditadura. Os anos se passaram. Cheguemos, então (e sem rodeios), a 2000. Estava eu (com um pouco mais de cinquenta anos), na sacada do meu escritório, na Rua Laranjeiras, edifício Aliança, nas adjacências da agência central da ECT, observando a passeata da virada de Déda. Era a eleição para a prefeitura de Aracaju. Ele começara atrás nas pesquisas, mas, crescendo a cada dia, tomou a dianteira e disparou (venceria com quase 53% dos votos válidos). De cima do trio-elétrico em que conclamava a multidão, Déda viu-me e, olhando-me nos olhos, gritou, para todos ouvirem: “Clóvis Barbosa, seu lugar é aqui. Do nosso lado. Saia daí. Eu conheço sua história”. Ri com o gesto, acenei e agradeci. Depois, entrei e chorei. Nada demais. Jesus também chorou.

Dois ou três anos depois, lá estava eu, procurador-geral do prefeito Marcelo Déda, aquele mesmo menino de dezessete anos. Agora, timoneiro de um novo encouraçado. De lá para cá, sempre estivemos juntos. Sim, e o porquê dessa amizade? Respondo. Sou de Estância. Mas meu pai era de Simão Dias, terra de Déda. Além disso, por ter sido do partidão (PCB), do antigo MDB e do PT (nos primórdios), minha linguagem política, assim como a de Déda, está ligada ao trabalhismo (este é o idioma que falamos, o idioma dos trabalhadores, o idioma da esquerda, marcadamente da latino-americana). Nosso propósito ideológico, ademais, é o mesmo: construir uma sociedade mais justa, onde a força do trabalho supere a exploração do sangue e do suor do operário. Vejam, pois, que eu e Déda compartilhávamos da etnia, do idioma e dos propósitos. Daí, meu orgulho por ter, de alguma forma, inspirado o jovem que se tornou meu ídolo.

Déda via o mundo pelos olhos do povo. Era um agente de transformação social. Ele tinha o arquétipo do político ideal: aquele que detém a magia de transformar derrotas em vitórias e vitórias em conquistas ainda mais memoráveis. Diferentemente do político estúpido, cuja débil ossatura só é capaz de projetar a engenharia do caos. Quando vencedor, transforma a vitória em derrota; quando derrotado, transforma a perda em sepultamento. O estúpido, na política, não morre inúmeras vezes. Morre apenas uma. A morte política, entretanto, depende mais da perspectiva do derrotado, do que do tratamento que lhe é conferido pelo vencedor. Daí, a necessidade de encarar cada batalha apenas como uma fase do longo processo que é a biografia política. Veja-se, por exemplo, a biografia política do jovem Marcelo Déda. Perdeu algumas batalhas? Sim. Mas por que transpira um ar como que de invencibilidade? Porque digeriu as derrotas, capitalizando-as, a fim de, mais tarde, lucrar com elas.

Mas, e o vazio que a ausência de Déda vai deixar em todos nós? Dizem que saudade é a sétima palavra de mais difícil tradução e, também, de difícil conceituação. O que é saudade? Neruda dizia que saudade é amar um passado que ainda não passou, é recusar um presente que nos machuca, é não ver o futuro que nos convida. O nosso menino Déda foi embora precocemente sob os aplausos do povo e o adeus dos seus amigos e familiares. Mas ele vai voltar. Agora, com as suas cinzas renascendo no Parque da Sementeira em forma de árvore.

* Escrito em 8 de dezembro de 2013, 11 dias após a morte de Marcelo Déda.

* É advogado.

Texto reproduzido do site: destaquenoticias com br

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Beto Pezão - Trabalho inscrito no Livro de Registro do Patrimônio Imaterial

Legenda da foto: Saberes e fazeres do artesão Beto Pezão: bens intangíveis ou imateriais

Artigo publicado originalmente no site JLPOLÍTICA, de 30 de novembro de 2023 

Beto Pezão tem seu trabalho inscrito no Livro de Registro do Patrimônio Imaterial

Por Antônio da Cruz *

Na próxima semana o senhor José Roberto Freitas aniversariará. Melhor dizendo: Beto Pezão comemorará o seu natalício. A ele, pois, feliz aniversário.

Foi o então povoado Carrapicho o berço deste artesão, que nasceu em 11 de dezembro de 1952. Seus trabalhos se espalharam pelo mundo, são muito bem característicos e identificados pela representação de figuras humanas com pés bem desproporcionalmente maiores. 

Localizada à margem direita do baixo São Francisco, norte de Sergipe, Santana do São Francisco é um polo de produção ceramista. Ali, o associativismo se evidenciou e desenvolveu a produção artesanal. A intensa atividade ceramista fez a cidade receber popular e simbolicamente o título de “A capital sergipana do artesanato”.

Foi nesse ambiente, conhecendo todas as etapas do processo de produção, que Beto Pezão cresceu e aprendeu com pais e avós as práticas na lide do barro. Ele chegou em Aracaju no ano de 1972, onde se estabeleceu e veio a se filiar à Associação dos Artesãos do Centro de Arte e Cultura J. Inácio - Sergipe Feito A Mão”.

Sobre a sua participação na entidade, Jean Santos Coutinho, vice-presidente, e Lícia Rocha Batista, presidente desta associação, numa carta de referência profissional, as palavras foram: “É gratificante constatar no quadro de sócios uma pessoa que faz diferença, sua honestidade admirável, pessoa segura do que quer e incrivelmente dedicado a fazer o melhor. Seu conhecimento e experiência como ceramista, agregada a suas habilidades chegaram a alcançar uma inteligência emocional evoluída”.

Em 2021 Beto Pezão requereu ao Conselho Estadual de Cultura o Registro no livro de Patrimônio Imaterial. Para quem se interessar pelo assunto, conforme a Lei Nº 28.977, de 24/08/2022, que trata do Patrimônio Imaterial em Sergipe, no seu artigo 3º, afirma que “As propostas de registro de bens culturais de natureza imaterial, acompanhadas de sua documentação técnica, devem ser dirigidas ao Conselho Estadual de Cultura – CEC, sendo partes legítimas para provocar a instauração do respectivo processo autoridades dos Poderes e Órgãos Constituídos da União, do Estado e dos Municípios, Membros do Conselho Estadual de Cultura, sociedades ou associações civis, ou qualquer cidadão”.

Ali, um conselheiro é designado para emitir o parecer, após avaliar a solicitação do requerente, para serem registrados seus saberes, modos de fazer, ou técnica desenvolvida e tipificação ou estilo dos seus objetos cerâmicos, associando ao seu nome artístico. São levados em conta “importantes referências identitárias, conforme a Lei de Patrimônio Imaterial, no seu Artigo 2º, Alínea III, afirmando que, no Livro de Registro de Formas de Expressão devem ser inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas, audiovisuais e lúdicas. 

Os tipos humanos concebidos por Beto Pezão, marcadamente, representam o sertanejo despojado da soberba do latifundiário e da riqueza material burguesa. Neles estão a força, a simplicidade e a resiliência. É vasto e diversificado o universo imaginário de Beto Pezão extraído do mundo real. Os aspectos sociais estão impregnados nas figuras. Sob o ponto de vista estilístico, o realismo social na obra de Beto Pezão só não se dá por inteiro porque suas formas humanas possuem características próprias. 

As expressões faciais marcadas pelas agruras, que poderiam decorrer da seca e da ausência de boas perspectivas na vida no ciclo de fartura que vai do período das chuvas de março a julho no litoral, ao de escassez delas por longo período que bem caracteriza o sertão, principalmente no Nordeste brasileiro. Até os santos europeus ganham feições marcadamente nordestinas. O sertão exige do seu habitante a capacidade de resistir e se recobrar do tempo ruim nos raros momentos de bonança.

O artista tem como persona, que sintetiza os tipos da sua galeria, Zé Pitoca, que em geral é representado por um jovem e reúne todo o simbolismo contido nas suas figuras humanas. Zé Pitoca dentre as suas representações ora é pançudo com proporções físicas que sugerem estatura pequena; ora criança sertaneja com chapéu e segurando com uma das mãos um saco onde estariam seus pertences ou completamente de mãos vazias e nu.

Da similaridade de muitas expressões, fica a pista de que, do biótipo do Zé Pitoca se derivam todas as personagens. Evidentemente o Zé Pitoca é um típico Pezão.

Desfilam na sua galeria o cangaceiro e seu arsenal, cuja variedade dentro do espectro  humano regional é percebida nas faces dos componentes dos bandos; o retirante que foge da seca com um saco às costas, que substitui a maleta e o “cadeado é um nó”; o roceiro e seus instrumentos de trabalho; a mulher que vai ao campo e vem com feixe de lenha e que também pode ser um patuá, sinônimo de cesto de cipó, na cabeça rumo à feira; a oleira e seus artefatos de barro; a mãe e seu filho numa alegoria maternal sacralizada; o caçador; o pescador; o beato a pregar sermões e conduzir seu rebanho; a freira na sua peleja com a caridade; a devota segurando o retrato do seu santo milagreiro; e, claro, a família, “célula mater da sociedade”.

O que resulta do trabalho de Beto Pezão é a certeza de que, no conjunto, elementos da cultura sergipana estão nele representados. A religiosidade, a tipificação dos componentes, sejam objetos e pessoas isolados, os conjuntos de elementos, os cenários e as situações sugeridas pelas figuras humanas e seus acessórios, que levam o observador a se convencer de que está diante do trabalho de um artista com raízes profundas no seu universo e nos seus fazeres artísticos.

Sob o ponto de vista do seu modo de fazer e do domínio completo das técnicas do trabalho com barro ele detém o conhecimento ancestral, tendo sido seu pai, João Freitas, um ceramista bastante popular que o iniciou, quando bem criança, com cerca de seis anos de idade.  Beto também fez adequações desenvolvendo recursos próprios dentro do método tradicional de trabalhar o barro. Do volume de conhecimento e do senso prático brotou da mente e das mãos de Beto a figura do “Pezão”.

“O Pezão” é uma obra icônica. Ninguém a dissocia do seu autor. Ainda que outro artesão o siga, uma cópia “genérica” é identificada pelo olhar de quem o admira e conhece sua obra. Não apenas o seu estilo é inconfundível, mas a qualidade do seu trabalho é irrepreensível. Ter um Pezão pode significar para os colecionadores a qualificação das suas coleções.

O “Pezão” surgiu da necessidade de vencer, mecanicamente, a inclinação natural, por força da lei da gravidade, das figuras enquanto o barro não secava. Para o artesão, deixá-las de pé nas proporções normais pretendidas se tornara um incômodo. O insight ou ideia súbita do artista fora prodigiosa, pois a estruturação do objeto seguiu a lógica de engenharia, fácil de compreender, pois massa expandida e adensada na base aumenta a resistência de uma estrutura, tal e qual o alicerce de uma casa.

Os saberes e fazeres do artesão Beto Pezão se enquadram como bens intangíveis ou imateriais, e se constituem “per si” marca, ou seja, seu nome, perceptivelmente icônico, associa-se a um conjunto de elementos identitários. Seus saberes e fazeres, enfaticamente, garantem, sob o ponto de vista da legislação, o Registro no Livro das Formas de Expressão e recebeu dos conselheiros todos os votos favoráveis.

* O articulista  Antônio da Cruz, é artista plástico e ativista sociocultural. 

Texto e imagem reproduzidos do site: jlpolitica com br