Foto: Márcio Garcez
Publicado originalmente na Linha do Tempo do Perfil no
Facebook de Marcos Cardoso, em 6 de agosto de 2020
Amaral encontra Cleomar
Por Marcos Cardoso
Assim que se abriu para ele o jardim dos justos, Amaral
Cavalcante avistou pessoas que lhe pareciam familiares e ali perto um homem de
barba grisalha numa cadeira de rodas folheando calmamente um livro.
- Cleomar! - acenou o poeta, vendo que o baiano lia uma
antologia de Drummond.
- Negão! – alegrou-se o amigo cadeirante. - Estava te
esperando...
- Você sabia que eu vinha?
- Fernando Sávio passou por aqui e espalhou a novidade.
- Fernando Sávio? – Amaral quase gargalhou, emendando com
uma lembrança: - Quando lançamos em 1981 o Folha da Praia, Fernando Sávio era o
nosso principal articulista, a novidade literária que orientou a empreitada por
uma nova linguagem jornalística em nosso meio. Mas a sua mais inesquecível
qualidade era a elegante malandragem, a entrega absoluta aos prazeres da vida;
estas coisas que nos fazem eternamente amados e saudosos, porque nos mantêm na
lembrança das ruas; elas que, verdadeiramente, detêm o poder de nos acenar com
certa imortalidade. Fernando Sávio Brandão de Oliveira era, sobretudo, um
boêmio consciente da sua genialidade, um homem emocionado com a própria capacidade
de alumbramento, um escritor completo de humoradas convicções, um letrado de
bem com a sua escrita e um amigo bom pra caralho! – Percebendo o que acabara de
falar, censurou: - Soltei um palavrão. Pode?
- Aqui pode quase tudo, à exceção daquilo que mais nos
deleitava, os prazeres da carne, a mesa farta e o álcool que nos fez homens
felizes. Mas obrigado a você, Ilma Fontes, pelo teu estandarte de luta, por ter
me mostrado, junto com Fernando Sávio, os caminhos aracajuanos que me
guardaram, com zelo – respondeu Cleomar, em forma de oração.
Amaral pôs-se a falar: - A casa de dona Jenny, mãe de Ilma
Fontes, era o nosso providencial aparelho. Mesa farta, sergipana, o belo cuscuz
guarnecido, ora jabá, ao ovo estrelado em manteiga da terra para começar. O pão
tostado na chapa, os biscoitinhos de fubá desmanchando na boca e a alva
macaxeira com fiapos de lombo! Comer tão bem nos incitava à subversão, tramada
sempre para depois do rango, que ninguém é de ferro!
Pensativo, Cleomar manteve-se contemplando os sergipanos: -
Em minhas andanças de vida encontrei momentos difíceis e foi bem pesado saber
administrá-los. Em compensação, essa mesma vida me propiciou momentos em que
tudo valeu a pena. Depois de ter percorrido os caminhos do jornalismo intenso,
nunca imaginei que justamente na terra que adotei de coração e pela qual sou
visceralmente apaixonado, Sergipe, fosse ser alvo de algumas homenagens que até
hoje, só em lembrar, provocam um aquecimento bem morno no meu coração.
- Amaral concordou lembrando de uma tarde vivida pelos dois:
- Quando fui visitá-lo, acolheu-me uma mãe heráldica, cabelos brancos, em coque
elegante, olhar percuto, postura juvenil: “Cleomar se acordou agora, mas ainda
não quis sair da cama...” Saquei na hora. Nessa tarde modorrenta de sexta-feira,
Cleomar mandara tudo à puta que o pariu e recolhera-se à lascívia dos lençóis,
curtindo o cheiro do próprio corpo nu, desobrigado do fastio das “boas-tardes”
protocolares e do cafezinho insosso na repartição. A visita foi curta, mas vi o
que me interessava: um fauno saltitante em sua relva memorial, soprando na
flauta a canção do seu destino. Absolutamente pagão e belo.
- Cleo fez um sorriso quieto de quem esconde um segredo
prestes a revelar: - Com um giro lento de cabeça, ousei encarar a face da loba
que resolvera chegar ao começo da madrugada uivando baixo e trazendo-me uma
certa perplexidade gerada por aquela voz quente, rasgo de noturno verão, cheiro
de doce perigo no ar. A mulher, quando é resolvida, fruta madura, sabe ter a
esperteza da loba e sabe sobreviver sem matilha. – E prosseguiu, lascivo: - Nas
madrugadas de amor e paixão, saber colher o fruto do suor amigo como o
apanhador no campo de centeio. Visitar, como um velho viajante, planícies e
dorsos da mulher amada. Palmilhar os quadrantes espalhados na pele morena da
menina amada. Lembrar que a tua amada não sua: orvalha.
- Amaral revirou os olhinhos e suspirou como se ainda
estivesse aqui: - Os cheiros guardam a senha da minha libido. É num sovaco
exalando o fortum do sexo que eu gosto de descansar após o coito. Fico, ali,
respirando o cheiro amante, como que revivendo o prazer da conquista, guardando
na memória a mais secreta identidade do corpo amado no cheiro do suor
compartilhado. Gosto de me enfiar sob lençóis para sentir o cheiro do meu corpo
ou de apodrecer dois dias sem banho para curtir o azedume dele em podridões e
ocultas putrescências. De vez em quando, nas mais assépticas ocasiões, cheiro
disfarçadamente o meu sovaco para aferir se inda sou eu que estou ali.
Riram, alegres e infantilmente!
- O olfato, seguramente, é um dos sentidos mais marcantes na
história de cada um – observou Cleomar. Parou pensativo e lembrou que o
recém-chegado poderia trazer novidades: - Quero o chicote do salitre raivoso da
maré de março estalando no lombo gorduroso dos que se envolveram em contas
fantasmas e, hoje, espalham seus glúteos fartos nas cadeiras inquisitoriais das
CPIs brasilienses enquanto tentam justificar as falcatruas cometidas contra o
erário público!
Mas a lembrança do salitre desviou o pensamento de Amaral
foi para outro assunto: - Minha tia Luizita morava na Praia Formosa, numa
casinha deliciosa, com varanda para as croas, que se formavam na maré baixa,
assim de maçunins e gorés. Do quintal delimitado por uma cerca de varas, via-se
um imenso manguezal, de lama escura, quase sem vegetação, que se estendia até
um sítio de manjelões, lá longe, onde depois construíram o Batistão. Foi lá que
eu conheci o mar em companhia dos meus irmãos.
Cleomar quis voltar ao assunto: - A praia, que era Formosa,
escurece suas águas e o cheiro fétido dos restos da “civilização” entristece as
águas do rio. Pelo canal Tramandaí, dia e noite, todos os dias, a grande ameaça
se expande, sem controle, sem alarde e, enquanto os automóveis circulam pela
cidade de Aracaju e os empreendimentos imobiliários anunciam seus lançamentos
em jornais e emissoras de TV, o rio sente um cansaço adormecer suas águas.
Amaral insistia com outras lembranças: - Queria viver perto
do mar! Transferir-me para o sem fim da praia e escancarar-me ao sol da
Atalaia. Queria deixar o mormaço da cidade, com suas ruas bêbadas de piche. A
maresia grudada nos cabelos, mergulhar toda manhã sete ondas rasteiras, orando
ao sortilégio da imensidão. Viver perscrutando o mar que banha a humanidade.
Esse mundão de água e valentia, esse lugar de ninguém. Do mar, eu queria o sal
da vida. Eu vivia bem em casa e o mar era meu moleque de recados:
- Vai ali à África levar notícias de mim. Ele ia.
- Corre, vai pegar um caramujo de sol, que eu quero
assoprar. Ele pegava e voltava estrondando mundo aos meus pés: meu cão de
espumas.
Cleomar: - Quem sabe, assim, a ira dos oceanos nos ajude a
exterminar de vez os chacais e hienas mutantes que roubam e tentam se cobrir
com o manto da impunidade perigosa.
Amaral recordou-se do menino de Simão Dias: - O mar, tão
incompreensível para mim, ainda era uma quimera desconhecida e distante. – E
reconheceu-se rebelde ao descobrir outras praias: - Era só descer do ônibus no
terceiro ponto da praia 13 de Julho e embarcar nas canoinhas de tábua até o
outro lado. O Colodiano, território sem incômodos da lei, oferecia maconha
livre e grandes baratos. Era o território livre da contracultura dos anos 1970,
bem ali, pertinho dos bem-bons da cidade, mas distante da repressão que nos
incomodava.
Cleomar: - É assim que te guardo, Aracaju, compartilhando de
cada momento vivido, de cada amanhecer que te visita, como se marcasses no
coração da gente uma cumplicidade definitiva dos que te amam.
Amaral: - Algo noturno fez da minha cidade uma aldeia do
mundo, eis que ficamos assim, simão-dienses. Ainda hoje, quando sonho com a
casa onde nasci, é na cozinha onde a minha saudade vai parar. É lá onde
reencontro a família cuidando de prover, com os cheiros do cominho e da hortelã
miúda, a memória do meu paladar.
Cleomar lembrou de algo que um dia escreveu: - No intervalo
da digestão, cada homem terá o direito de ler os versos de Thiago de Melo,
ouvir sua música preferida, quem sabe até receber no rosto a visita de uma
brisa da tarde com cheiro de manhãs esperadas.
Amaral: - Minha mãe Corina quis transformar aquela casa em
hospedaria. Acho que vem daí, da compartilhada habitação na minha casa
ancestral, a capacidade de conviver com pessoas diversas, a respeitar o espaço
dos outros, a servir — com dignidade — aos que me solicitam e, principalmente,
a me tornar transitável.
- E o que o poeta andava fazendo ultimamente?
- De tardinha, costumava ir ao sorvete. Botava um
calçãozinho leve, pós-moderno, uma camisa churriada, que eu mesmo reabilitei
aparando as mangas. Gosto delas assim. Dá um tom de bofeca-mas-não-tanto, que
me delicia. E ia, luxento e faceiro, a meu Clair de Lune.
- Boêmio que é boêmio não vai somente a um bar um tempo
inteiro. Caso aja assim, corre o risco de fazer parte da paisagem ou então se
tornar referência do local.
Amaral prosseguiu: - Arquibaldo, também chamado, no Colégio
Agrícola, de “Sarrabuio do Cão”, me descobriu lá. Inda me fiz de manco, numa
retirada infeliz, que não deu certo. Ficamos, então, na sorveteria, frente a
frente, pela eternidade de dois suspiros, até que Arquibaldo me fitou com a
meiguice juvenil, que eu julgava perdida: — Tonho, eu me lembro sempre de você.
E tocou, como um anjo remido, a minha infame cabeleira branca. A lua inchou em
busca de horizontes e eu fui pra casa ouvir Debussy. A vida me queria bem.
- Vamos chegando – atalhou Cleomar e seguiram. À frente,
avistaram Fernando Sávio e Barrinhos rindo com Hilton Lopes dizendo
cocoré-bico-de-pato. Próximo, estava Araripe Coutinho declamando em voz alta o
último poema e ouvido com emoção por Ezequiel Monteiro, Santo Souza, Joel
Silveira, Hunald Alencar, Antonio Carlos Viana e Luiz Antonio Barreto.
Amaral lembrou-se do que disse certa vez sobre o mais culto
dos jornalistas: - Luiz Antonio Barreto é uma ponte sólida entre a
intelectualidade empedernida das academias e o batente fogoso da vida
artística. Um elo (creio que insubstituível) entre a realidade cultural
sergipana e os alfarrábios da história. Um homem que perseguiu a boniteza da
vida com elegante nobreza e se findou respeitado pelo que acertou na vida.
Mestre Luiz, guarde-me uma cadeira no cafezinho do céu.
Nem percebeu que atrás deles já vinham José Fernandes e
Edgar do Acordeom se dirigindo a Ismar Barreto, que dedilhava um violão e era
fotografado por Sidney Leite.
Assim é o céu.
*Citando por inspiração os livros “Os segredos da loba”
(2009), de Cleomar Brandi, e “A vida me quer bem – Crônicas da vida sergipana
(2019), de Amaral Cavalcante.
Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Marcos Cardoso