quarta-feira, 13 de julho de 2022

'Rosa Faria', por Ismael Pereira

Legenda da foto: Rosa Moreira Faria 28.04.1917 - 01.05.1997

Publicado originalmente no blog Academia Literária de Vida, em  30 de abril de 2022

Saudade 

Rosa Faria 
Por Ismael Pereira*

E um poeta disse: “Fala-nos da beleza”. E ele respondeu:

Onde procurareis a beleza e como a podereis encontrar a menos que ela mesma seja vosso caminho e vosso guia? (Khalil Gibran.)

    Quando nasceu Rosa Faria, ilustre sergipana de Capela, em 28 de abril de 1917, com certeza um coro de anjos celestiais repartiam talentos e dons. Coube a Rosa, por antecipação da sua dignidade e do seu merecimento, o botão da criatividade que se faz arte como fortuna inviolável e herança divina, que a nossa Rosa sabiamente multiplicou, chancelando-a com o selo indispensável do cuidado, do compromisso com a sua vocação, e especialmente pelo amor cívico que dedicou à história do seu país e às pessoas da sua terra. Rosa cresceu como uma flor de rara beleza, suavidade e nobreza, aprendendo com a família: seu pai, o artista João Guimarães Faria, conhecido como João da Luz –, que trabalhava no Serviço de Luz e Força -, e sua mãe, Arminda Faria, pessoas simples e generosas, que lhe deram farto exemplo de convivência humana. Destaca-se a presença da sua avó, Rosa Moreira Frião, professora de ilustres sergipanos, pianista e poetisa que também contribuiu para o aperfeiçoamento intelectual e artístico dos tesouros humanos herdados por Rosa.

    Assim, Rosa Moreira Faria, cresceu e aprimorou seu cabedal artístico-cultural ao fazer o curso de artes plásticas no Departamento Nacional do Serviço de Aprendizagem Industrial, no Rio de Janeiro e o curso de desenho artístico com autorização para lecionar em qualquer parte do território brasileiro, servindo apenas como um complemento, vez que ela ao receber o sopro da vida, concomitantemente foi abençoada pela luz da sabedoria, como dádiva do Criador.

    Mulher admirável, detentora de irretocável formação religiosa, moral e cívica, a nossa Rosa se tornou única, desenvolvendo um dinamismo ímpar, inspirando-se em inesgotável fonte de criatividade. Peculiar, face aos limites da mulher no contexto da sua época, colocou a sua dignidade inteira à disposição do seu talento artístico e das suas múltiplas vocações, exercitando as suas escolhas acadêmicas ou profissionais, sempre com firmeza e suavidade. Foi professora, artista plástica, pesquisadora, historiadora, escritora, biógrafa, telegrafista, jornalista, taquigrafa e poetisa. Foi, portanto uma mulher extraordinária, que se entregou à diversidade e às exigências da sua arte e do seu trabalho, empreendendo os fazeres da vida com tanto amor, probidade e dedicação, e de tal modo se entregou as ações que desenvolveu que hoje, todos nós, capelenses, sergipanos, brasileiros, afortunadamente podemos nos orgulhar e compartilhar a soberania do seu exímio talento no portfólio da sua (da nossa) história.

    Sua obra foi calcada notadamente na inconfundível escola Naif, uma escola de origem francesa transposta para a circunstância cultural brasileira. A paixão de Rosa Faria pela arte Naif, ou primitiva para alguns críticos, se ajusta perfeitamente no que disse o fundador do Museu de Arte Naif do Rio de Janeiro – Lucien Finkeistein: “Uma paixão não se explica, vive-se.” Assim foi a paixão de Rosa Faria, como também foi a paixão dos consagrados pintores Naifs: Henri Rousseau, Louis Vivin, Andre Bauchant, Monsueto, Heitor dos Prazeres, Chico da Silva, Valdomiro de Deus, Antonio Poteiro e outros titãs vinculados ao primitivo moderno. Rosa Faria descobriu no mundo encantado e encantador do Naif, a singeleza das cores básicas e o belo universo das formas simplificadas, sem rodeios e sem os rigores das formalidades programáticas; seus traços, decisivos e firmes, percorriam religiosamente o caminho por ela traçado para chegar onde pretendia no contexto de sua obra, sublimando assim seus mais puros sentimentos estampados na planimetria das telas e na delicada superfície multifacial das peças de porcelana que tão esmeradamente pintou.

    Mulher singular e ao mesmo tempo plural, inquieta, polivalente e perfeccionista, características marcantes da artista da terra do saudoso Padre Juca, Capela, a gloriosa – “princesa dos tabuleiros.” Nos longos caminhos percorridos em vida, Rosa, com seu carisma natural, recebeu muitas rosas, mas também teve que enfrentar com determinação, altivez e coragem a agudeza dos espinhos encontrados no caminhar. Foi assim que a nossa inesquecível artista capelense pesquisou, telegrafou, taquigrafou, com mestria fez poesia, ensinou o que sabia, escreveu, fez noticia para o jornal, bordou e pintou com as tintas de sua alma pulcra os mais sagrados cantos e recantos da sua querida Aracaju, capital do pequeno notável Estado de Sergipe, ao qual Rosa Faria prestou relevantíssimos serviços.  

    Por julgar oportuno, louvo esta tão feliz iniciativa da Associação Sergipana de Imprensa, capitaneada pelo dinâmico Presidente Cleiber Vieira, pois acender todos os seus litúrgicos turíbulos para incensar a memória de tão insigne figura sergipana, é praticar o nobre gesto do necessário reconhecimento. 

Portanto, é importante ressaltar que a nossa Rosa Faria, cuidou muito bem dos tesouros que Deus lhe deu, e por sua persistente vocação, por seus sonhos quase sempre solitários e carentes de apoio à preservação e elevação da nossa cultura, e da nossa memória, essa mulher invulgar construiu com as suas próprias mãos sempre ocupadas com a arte de incomparável talento, uma obra de inestimável valor histórico, seu legado de eterna referência à nossa própria história.

    Finalizo afirmando com a mais absoluta convicção – se mais vida tivesse por amor a Sergipe muito mais “Rosa Faria.”

* Artista Plástico

Texto e imagem reproduzidos do blog: academialiterariadevida

'Amaral, esse adeus não dado', por Carlos Cauê

Publicado originalmente no Perfil do Facebook de Carlos Cauê, em 11 de julho de 2022

Amaral, esse adeus não dado.
Por Carlos Cauê

Digo num poema que a partida de Amaral Cavalcante não causou ainda a justa dor da nossa perda. Imersos na esquizofrenia do isolamento causado pela pandemia, deslocados por uma realidade inesperada, atônitos, começamos a naturalizar a morte. Milhares iam-se para sempre, todos os dias. E a gente numa janela esquisita da vida, máscara na cara, impotentes. Aí ele se foi. 

Era sete de julho e, a quatro dias dali, num 11 de julho que ele não viveu, faria anos. Não esperou. Cingido por “malinculias” que foram aos poucos lhe arrancando o costumeiro vigor e inquietude, o poeta ia das invasivas hemodiálises aos já incorporados cuidados com o diabetes e outros males, com a galhardia com que sempre trilhou seus quase setenta e quatro anos. As últimas vezes que fora lá em casa, já recusando as bebidas e os complexos manjares, pilotava uma cadeira de rodas, e ainda achava jeito de divertir-se com sua falta de senso de direção. Tirava onda da sua própria dor.

Olhos marejados, peito arfante, dor espetada pelo trajeto de décadas de convivência e cuidados, foi Samuel quem me trouxe a indesejável notícia. E foi com ele no carro, silêncio impedindo qualquer palavra, que acompanhamos o carro funéreo leva-lo. Num veículo atrás de nós, suas irmãs também cumpriam aquele trajeto de despedida. Cruzamos o Vaza-Barris pela ponte Joel Silveira, mas o que poderia ser um bafejo de homenagem era apenas o caminho fatal para o adeus.  

Numa rodovia erma de Itaporanga, ladeado apenas pelo nada, entregamos seu corpo ao crematório solitário que cumpriria as funções finais. Nem um último olhar no caixão, ninguém além da meia dúzia de gente que chegara ali, nem o choro merecido pela perda, nem a rememoração das espetaculares histórias que ele legou à cidade e às pessoas, nem suas crônicas, seus poemas, seus formidáveis maus-humores, sua genialidade sensível e visionária. Nada. 

O sorriso solidário e generoso do funcionário do local deu à cena torturante um pequeno alívio. E ele se foi. Nada mais havia a ser. Nem abraços, nem soluços, nem corpo baixando à terra. Apenas, novamente, o silêncio encravando aquele dia no para sempre até hoje.

Vou ao poema: 

(...) 

É como se não houvesses partido

Fizesses um feriado prolongado

Uns dias sabáticos

Um Hare Krisna de si

Tua partida definitiva

Ainda não mostrou a justa dor

Da nossa perda

Não há dia útil a te retornar

Ao expediente da vida

Praia de onde possas retornar

Campo

Montanha

Nunca mais virás

E a ausência da necessária dor

Põe à prova a minha humanidade 

(...)

Adeus, poeta.

Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Carlos Cauê

Publicação original no Facebook > https://bit.ly/3uFltUb

sexta-feira, 8 de julho de 2022

O 8 de julho, independência de Sergipe: passado, presente e lições da história

Publicação compartilhada do site da UFS, de 9 de julho de 2021

O 8 de julho, independência de Sergipe: passado, presente e lições da história
Por Edna Maria Matos Antonio

Celebramos o dia 08 de julho, data fundamental na história política do estado de Sergipe. Num longínquo ano de 1820, a carta régia emitida por D. João VI determinava que a capitania alcançava a condição de autonomia política e administrativa em relação à Bahia e, a partir daí, deveria responder ao governo da mesma forma que as demais capitanias nesta parte deste vasto Império colonial.

O processo de autonomia política de Sergipe e sua transformação em província autônoma nos remete a conhecer um intricado processo histórico que tem sua origem nas transformações administrativas na primeira década do século XIX, precisamente no efeito das reformas econômica e administrativas postas em prática pelo governo de D. João VI, desterrado no Brasil desde 1808. A colônia portuguesa experimentava um processo de desenvolvimento econômico sendo estimulado o potencial produtivo de cada região colonial para fornecer riquezas diversificadas para Portugal, num contexto de práticas econômicas que poderíamos chamar Reformismo Ilustrado.

Em Sergipe, tal orientação do Estado metropolitano reforçou seu papel de produtor de gêneros de abastecimento interno e de produtos para o mercado internacional. Para melhor administrar o território, controlar as atividades produtivas e a população e fazer o Estado mais presente, D. João e seus ministros procuraram fortalecer o poder real em todos os cantos nestas terras americanas. Essas iniciativas visavam, ainda, à construção do Rio de Janeiro como referência central de poder na América portuguesa, questão que assumiu importantes contornos, pois o modo de relacionamento da Corte com as demais regiões levou a demarcar aquela cidade como metrópole em relação demais possessões na América portuguesa.

Para o sucesso desta reforma, era importante a subordinação dos colonos ao poder real, no sentido de obedecer às determinações do Rio de Janeiro sem intermediação de outras esferas de poder regional, que fragmentassem, hierarquizassem ou mesmo contrariassem a autoridade monárquica originada na Corte, como acontecia na relação entre a Bahia e Sergipe.

O gesto de separar Sergipe da Bahia, transformando-a de território anexo em capitania regida e equiparada ao mesmo nível das outras, também poder ser interpretado como uma forma de expressão da gratidão de D. João VI aos colonos que lhe foram fiéis, defensores da causa monárquica ante uma das mais importantes insurgências do período colonial: a Revolução Pernambucana, movimento separatista e republicano, ocorrido na capitania de Pernambuco em 1817. As tropas de Sergipe e da Bahia ajudaram a reprimir o movimento sedicioso e, por recompensa, a autonomia administrativa teria sido concedida. Estes fatores podem ser considerados pertinentes pois faz emergir a cultura política do Antigo Regime em que os atos dos monarcas são vistos como promotores de dádiva, benesses ou graças. Isso contribuiu para reforçar a visão do rei como um ente generoso com seus vassalos e o bom pai que sabe recompensar seus filhos obedientes. Importante elemento do mundo político naqueles tempos, o reconhecimento deste componente cultural ajuda a compreender o vigor da figura monárquica nas concepções de sociedade e de Estado em que a importância da monarquia e suas funções não foi abandonada por completo, mesmo num contexto de intensa transformação política. Pelo contrário, foi mantida desde que reformulada para atender aos critérios do Liberalismo político e econômico.

A ocupação de um cargo de comando administrativo na estrutura colonial, um processo que normalmente deveria ocorrer sem maiores abalos, foi permeado de reveses e conflitos. Quando o primeiro governador Carlos Burlamaqui chega a Sergipe em fevereiro de 1821 para dar início a sua administração como capitania autônoma, o Brasil encontrava-se envolvido com os efeitos da Revolução do Porto, ocorrida em agosto de 1820 naquela cidade portuguesa. O movimento liberal português exigia o retorno de D. João à Portugal e a elaboração de uma Constituição e, para tanto, solicitava que as capitanias enviassem representantes coloniais para participar desse congresso (as Cortes de Lisboa) e da elaboração das novas leis que iriam envolver todos os indivíduos espalhados por todo Império.

As lideranças políticas da Bahia acataram prontamente essa solicitação, pois simpáticos ao Liberalismo, aderiram ao constitucionalismo e decidiram formar um bloco de apoio na região norte da América Portuguesa a essas determinações, numa clara posição de enfrentamento ao poder que vinha do Rio de Janeiro. Para isso, as lideranças políticas e militares da Bahia anularam o decreto de D. João VI, prendendo o primeiro governador e anexaram novamente Sergipe ao domínio baiano. O poder na localidade é assumido por Pedro Vieira de Melo, militar, alinhado às ideias propostas pelas Cortes portuguesas e representante de um grupo numeroso na capitania que concordava com a anexação a Bahia e reprimia fortemente as ações de resistência ou confronto a essa situação. Assiste-se, então, um longo processo de lutas, locais e gerais, guiado pelas decisões tomadas em Lisboa, no Rio de Janeiro, na Bahia e em Sergipe.

Sergipe carrega a especificidade de ter que lidar com as questões políticas de um duplo movimento de autonomia: o interno e o da colônia em relação à Portugal. O momento foi muito intenso e rico em debates políticos, pois as pessoas naquela época estavam discutindo e escolhendo os caminhos que afetariam a sociedade como um todo e de modo permanente. O dilema, e razão dos conflitos, dizia respeito a necessidade de definir qual projeto possuía a efetiva capacidade de solucionar os problemas econômicos e sociais e traria os benefícios esperados: se manter ligados a Portugal ou anuir ao projeto de autonomia da colônia capitaneado pelos políticos do Rio de Janeiro tendo D. Pedro como liderança que, a essa altura, já considerava protagonizar a independência e formar uma nação nova. O movimento da Independência e transformação da colônia em nação envolveu amplos setores da sociedade colonial e atingiu diferentemente seus agentes: donos de engenhos e de escravos, produtores e comerciantes, elementos do clero, militares, libertos, escravos, pobres e ricos, pessoas que nutriam expectativas diversificadas, viam na mudança de condição política o caminho para a mudança de condições sociais, a exemplo de negros, mestiços e seus descendentes, que acreditavam que a separação traria a contemplação de direitos para a população pobre, livre e escrava, pela possibilidade da construção de uma realidade melhor, justa e digna.

Para Sergipe, a estratégia de alinhamento ao projeto de D. Pedro e do Rio de Janeiro – sem que isso expressasse a aceitação plena de sua autoridade, problema que exigirá ações violentas e autoritárias na região por meio de mercenários - significou a possibilidade de obter a confirmação da tão desejada autonomia da província. Essa escolha justificava-se não somente pela satisfação e preservação dos interesses autonomistas dos sergipanos, mas pelo vigor da autoridade e lealdade monárquica, heranças dos atos de D. João VI para a capitania e o esvaziamento das propostas das Cortes portuguesas principalmente pelo descrédito dos deputados brasileiros temerosos de que as regras de relacionamento entre os dois reinos fossem injustas para o Brasil.

Se as palavras “polarização política” estão na ordem do dia em tempos de discussão política amplificadas pelos suportes digitais (para o bem e para o mal), é oportuno esclarecer que, enquanto fenômeno político, ela sempre existiu. Entendida como a divisão de uma sociedade em dois polos a respeito de um determinado tema, no contexto das independências, como demonstrado acima, a confrontação envolveu modos diferentes de conceber os projetos para o futuro do Brasil, o que levava a defesa do projeto que parecia melhor assegurar a efetivação das transformações jurídico-institucionais avaliadas como imprescindíveis para o seu desenvolvimento econômico e social.

Apesar de todas as disputas e o projeto vencedor conhecido por nós, a Independência do Brasil, foi mantida uma estrutura de dominação e de exclusão social fortíssima, com o impedimento de participação política institucional de indivíduos pobres, mulheres, índios, negros e mulatos, questões que até hoje nossa sociedade se debate em resolver. Enfim, na montagem do novo país, nem todos os brasileiros teriam reconhecimento de cidadania, embora participassem da construção da nação e fossem a essência dela.

De qualquer forma, aproveitemos o 08 de julho como alegria e civismo pois é a data que marca a liberdade política e conforma traços e identidade específicas da sociedade sergipana e a conquista de sua autonomia administrativa, processo fundamental para seu desenvolvimento econômico e social. E atuou e contribuiu de forma intensa no complexo processo de construção do que somos hoje, nação brasileira. A experiência que envolveu a Independência de Sergipe nos lembra, ainda, da capacidade de agir e transformar que os indivíduos possuem em toda temporalidade histórica. Comprova que a realidade não é imutável e nem deve ser um fardo irreparável; que as pessoas vivem as questões de seu tempo e que sempre haverá muitos interesses em jogo em momentos de decisões políticas fundamentais cabendo escolher e lutar pela transformação e melhoria de suas condições de vida. A capacidade de planejar, pensar o futuro, defender convicções justas e coragem para a construção de projetos de sociedade livres constituem importantes aprendizados derivados do passado que em nossa época assumem contornos decisivos uma vez que a política, mesmo com as decepções e sensação de fracasso, deve ser a instância de atuação e participação das sociedades maduras democraticamente para a tomada das decisões sobre um povo e seu destino.

Texto reproduzido do site: ufs.br

terça-feira, 5 de julho de 2022

'Rita Peixe Mulher Lendária', por Ribeiro Filho

Legenda da foto: Rita e Zé Peixe sendo homenageados na Marinha do Brasil, 
Capitania dos Portos de Sergipe.

Legenda da foto: Rita com os filhos Robert Shunk Ana Luiza Nunes Shunk Ana Rita Shunk e as netas Maíra e Luana Shunk.

Texto compartilhado de post do Perfil/Facebook/Ribeiro Filho, de 4 de julho de 2022

Rita Peixe Mulher Lendária
Por Ribeiro Filho

Ontem foi um dia triste, dia de despedida de Rita Ribeiro Nunes Shunk, um ícone da "Geração Oxente", que mexeu com os brios da recatada sociedade provinciana de Aracaju, das décadas finais do século passado. Como toda lenda urbana, muito do que se conta e se propaga tem um fundo de verdade. A curiosidade sempre fica aguçada, quando se trata de pessoas de grande projeção, criam-se realidades paralelas, alguns exageros são cometidos e, o preconceito as vezes reproduz fatos irreais.

Vamos começar esclarecendo que Rita Peixe era Irmã de Zé Peixe - José Ribeiro Martins Nunes, o prático sergipano, mais famoso do mundo. Muita gente pensa que Rita Peixe era a mãe ou esposa de Zé Peixe. Contudo, olhando pelo plano familiar, Rita Peixe era a mulher forte e esteio de toda família. Era ela quem cuidava da vida cotidiana de Zé Peixe e do irmão Antônio Ribeiro Martins. Era ela quem cuidava das compras básicas da casa e da vida financeira dos irmãos. Pois Zé Peixe não tinha nenhuma vocação para o trato com dinheiro, se deixasse, ele distribuía todo seu salário de Prático, com os pedintes e pessoas que o procuravam para pedir ajuda.

Durante a semana era comum encontrar "Dona Rita" acompanhada de Seo Júlio, percorrendo suas casas e apartamentos, para fazer os reparos, para alugar ou vender. Rita era uma mulher dinâmica, era a mãe, avó, irmã e pai de toda familia Ribeiro Martins e Shunk. Como sou amigo da família, tinha uma convivência mais particular. Além da vida de glamour das noites musicais da boemia de Aracaju, costumava encontrar com ela, nas lojas de material de construção, nas lojas de material escolar, fazendo compras para resolver, cuidar e administrar a vida familiar, como qualquer mulher proativa da atualidade. PS. Seo Júlio era o fiel escudeiro de Rita Peixe, era uma funcionário faz tudo, que fazia os reparos hidráulicos, marceneiro e pedreiro. 

Além dos irmãos, Rita Peixe tinha todo cuidado com os seis filhos, fruto do casamento com o engenheiro norte-americano Dwight Shunk. Ainda jovem Rita Peixe se viu com a responsabilidade de cuidar dos filhos. Abandonada pelo marido, ele teve que cuidar da educação e do futuro da extensa prole, e ainda enfrentar o preconceito da provinciana e católica sociedade sergipana, dos anos de 1970 e 1980.

A Rita das noites boêmias e da arte 

Se vocês pensam que ela deixou de ser feliz e celebrar a vida em alto estilo, enganaram-se. Rita acolheu outra mulher forte e destemida, Lu Spinelli, ela alugou sua casa da avenida Ivo do Prado para, que Lu Spinelli abrisse sua primeira academia de Dança. Em sua casa do sítio, na Visconde de Maracaju, Rita reunia a nata da intelectualidade rebelde de Aracaju, os poetas, músicos, atores, artistas plásticos, escritores, dançarinos, e toda uma plêiade da fina boemia da cidade, parte da "Geração Oxente". Assim, Rita reunia em seu sítio, todos os filhos rebeldes, que a sociedade conservadora sergipana rejeitava.

Aliada a esse exército de rebeldes intelectuais, Rita encontrou forças para enfrente o preconceito, e a pesada pecha de mãe solteira. Com esses fortes aliados, a Rita levou seu sorriso, e sua beleza para as noites da boemia de Aracaju. Ninguém ousava apontar um dedo, ou torcer o nariz para essa turba de artistas irreventes. Eram a vanguarda das artes, que estavam em sintonia com os movimentos culturais e sociais que fervilhavam pelo mundo. A rebeldia da geração pós Festival de Woodstock, dos iconoclastas do Movimento Hippie, que pregavam o amor livre, o pacifismo e harmonia com a natureza. Eram jovens que pensavam e viviam alem do seu tempo. Estavam antenados com o movimento da Contracultura, que questionava e negava todos os padrões da cultura vigente, que visava quebrar tabus e contrariar normas e padrões culturais que dominam uma determinada sociedade. Em geral, as ações de contracultura surgiram de jovens descontentes com a vida e os padrões estabelecidos por seus pais.

Essa geração de artistas rebeldes impôs seus novos conceitos de família, e de convivência social, as vezes chocando toda sociedade aracajuana, com suas atitudes e discursos em atos públicos, e na noite boemia da cidade. Rita Peixe foi amiga particular do colunista social e jornalista João de Barros "Barrinhos", que realizou durante mais de uma década o Baile dos Artistas. O Baile dos artistas abria o Carnaval de Aracaju, era a festa mais radical, quando se tratava de romper com os conceitos vigentes. O Baile dos artistas quebrava todos os tabus e conceitos constituídos da sociedade careta e hipócrita, da nossa provinciana cidade. Rita Peixe era a madrinha e a Rainha desse baile do Barrinhos. 

No final da década de 1980, uma amigo, filho de uma tradicional família de Aracaju, resolveu assumir sua homossexualidade, mais ainda, decidiu desfilar como travesti, nas noites da Rua da Frente. Para esconder sua identidade, ele dizia para os outros travestis, que era filho da famosa Rita Peixe.  Quando falei para ela sobre o esse caso, ela deu boas risadas e disse, que ela poderia sim, continuar usando seu nomee sobrenome. Rita era assim, uma mulher além do seu tempo e dos conceitos da sociedade conservadora em que viveu.  Recebia e acolhia com muita alegria, todos os rebeldes e deserdados, todos que sofriam com os preconceitos vigentes. Além dos seus filhos que foram criados com sua proteção de super mãe e super mulher, dos irmaos que ela tambem protegia e cuidava, Rita Peixe abriu sua casa para acolher os filhos rebeldes de outras tantas famílias, que não compreendiam e não aceitavam, as mudanças sociais, que aconteciam em várias partes do mundo. 

Todas as vezes que a gente se encontrava em lugares públicos, ela fazia questão de pedir um beijo de lábios, um selinho. Ela nunca perdeu sua alegria desafiadora, e nunca cedeu aos padrões e normas caretas de sociedade em que viveu. Detalhe, apesar de gostar da vida boêmia, das noites de seresta e música, Rita Peixe não bebia uma cerveja sequer, não gostava  de beber nenhuma bebida alcoólica. Ela gostava mesmo era de cantar, dançar e ouvir a cantoria dos românticos. Ela era a companhia ideal para os bêbados e loucos da cidade. Era o anjo que conduzia todos com segurança, ao amanhecer. 

Eitcha ia esquecendo, Rita Peixe, assim como seu irmão Zé Peixe, era uma exímia nadadora, participou e venceu várias vezes a Travessia Almirante Tamandaré, prova que acontecia da Capitania dos Portos para a Barra dos Coqueiros, prova de 800 metros atravessando o Rio Sergipe. 

Rita Peixe está sendo festejada com seresta, pelos amigos que já a esperam no céu dos artistas e rebeldes.

Texto e imagens reproduzidos do Facebook/Ribeiro Filho

domingo, 3 de julho de 2022

Morre Rita Ribeiro Nunes Shunk (Rita Peixe)


Fotos reprodução de seu Perfil no Facebook

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Artigo de Clara Angelica Porto, postado originalmente no seu Perfil do Facebook, em 3 de julho de 2022.

Foi-se Rita. Rita Peixe. A sereia de várias gerações. Bater com Rita por aí era sempre alegria e aprendizado. De como viver sem algemas, e usar as mãos para acariciar. De como viver sem fronteiras e alcançar as fronteiras das pessoas. Rita, sempre cercada de gente, com esse sorriso aí da foto, dando boas vindas a quem chegasse. Rita das muitas histórias, dos amores, da dignidade de quem sabe ser o que é. Rita do coração aberto, mãe de tantos filhos, além dos filhos que pariu. Rita, a menina mulher desbravadora, que atravessava o rio Sergipe com a mesma facilidade que atravessava a rua. Rita era presença forte em Aracaju. Mesmo quem a criticava, o fazia com uma ponta de inveja. Quem não gostaria de assim ser, com tanta coragem e ousadia? Com tanto talento para apreciar a vida? Para viver? Rita foi colecionando tristezas, como tantos o fazem. Ficou imobilizada anos. Mas tenho certeza de que a mulher peixe de Aracaju continuou mergulhando nos mares da vida até o fim. Faz tempo que não lhe via, Rita Peixe, mas nunca deixei de lhe ver. Descanse, Rita, mas não descanse muito não. Os anjos por aí têm muito o que aprender com você. Jamais esquecerei o seu sorriso, quando chegava ao Gavetão, você na rede do sítio depois do 28, suas histórias que me entretiam e fascinavam. Todas vividas. Sem nada a acrescentar, pois você chupava aquela manga do sítio até o caroço ficar limpo. Rita, mande aqui pra baixo um pouco daquela alegria contagiante. O mundo precisa.

Texto e imagem reproduzidos do Perfil Facebook/Clara Angelica Porto

Publicação original no Facebook > https://bit.ly/3NLobhw