quarta-feira, 3 de abril de 2019

Por que não se fala em Manoel Bomfim?


Publicado originalmente no site Expressão Sergipana, em 01 de abril de 2019

Por que não se fala em Manoel Bomfim? 

Documentário busca dar visibilidade à vida e obra de um dos principais pensadores brasileiros

De Paulo Victor Melo 

“Uma voz que ousava dizer o indizível”, “um pensador que não temia pensar o impensável”, “o rebelde esquecido”. Com essas palavras, o sociólogo Ronaldo Conde Aguiar referiu-se a Manoel Bomfim, um dos intelectuais mais importantes para a constituição da base, corpo e alma do pensamento social brasileiro.

Com um trabalho sobre a vida e obra de Bomfim, Conde Aguiar recebeu, em 1999, o prêmio de melhor tese de doutorado no I Concurso Brasileiro de Obras Científicas da Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), demonstrando a importância da contribuição de Bomfim para o entendimento das raízes do Brasil, para a explicação da realidade brasileira e para a compreensão da relação do país com a América Latina.

Mas se o legado de Manoel Bomfim cumpre papel determinante para o diagnóstico e as buscas de saídas democráticas sobre/para o Brasil, por que esse autor tornou-se esquecido ao longo do tempo? Essa é uma inquietação presente há algumas décadas na intelectualidade brasileira, desde que Darcy Ribeiro, na metade dos anos 1980, o classificou como “o pensador mais original da América Latina”. Exemplos disso são os textos escritos por Gilson Dantas, em 1997, em que pergunta por quais motivos Manoel Bomfim fica à margem dos livros escolares, e de Aluízio Alves Filho, que afirma ser Bomfim o “ensaísta esquecido”.

Passadas mais de duas décadas dos questionamentos de Conde Aguiar, Gilson Dantas e Aluízio Filho, o cineasta e documentarista argentino, radicado há anos no Brasil, Carlos Pronzato renova as inquietações ao produzir o documentário “Por que não se fala em Manoel Bomfim?”

Com o título não deixando dúvidas sobre os objetivos da obra audiovisual, Pronzato acredita que, embora esquecido, Bomfim permanece atual, mesmo após aproximadamente 87 anos da sua morte. “A voz deste ‘rebelde esquecido’, mesmo enfraquecida, chegou até nós por meio de várias reverberações, e em uma contemporaneidade profundamente marcada pela corrupção política, pela descrença generalizada em várias instituições e por inúmeras mazelas mal resolvidas no plano social, o conteúdo das reflexões do intelectual sergipano torna-se atual e necessário, enquanto instrumento de analise para pensarmos o processo político, bem como as relações entre estado e sociedade no país”, afirma.

Uma das principais hipóteses sobre o “esquecimento” de Manoel Bomfim, abordada no documentário, diz respeito ao caráter revolucionário das suas ideias, tendo sido, por exemplo, uma das mais expressivas vozes dissonantes às teorias racistas de branqueamento da população como solução para os problemas do país, muito em voga à época. Bomfim, no caminho oposto, afirmava que o problema fundamental era uma espécie de “parasitismo social” das elites e defendia a pluralidade étnica como um potencializador do desenvolvimento do país, sendo a educação o caminho para a emancipação das classes populares.

Com lançamento previsto para o início de abril, próximo a data da morte de Manoel Bomfim (21 de abril), o documentário é construído a partir de pesquisa histórica e entrevistas com pesquisadores que produziram e continuam a produzir materiais sobre a obra de Bomfim, como Aluízio Alves Filho, citado anteriormente; Rebeca Gontijo, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autora do livro “Manoel Bomfim”; José Vieira da Cruz, professor da Universidade Federal de Alagoas, e co-organizador do livro “Manoel Bomfim e a América Latina: a dialética entre o passado e o presente”; e Ricardo Sequeira Bechelli, que escreveu “Nacionalismos anti-racistas: Manoel Bomfim e Manuel Gonzalez Prada”.

Entendendo que a obra de Bomfim está conectada e influenciada diretamente pelo chão que o moldou, o documentário conta com depoimentos de diversos intelectuais, estudiosos e ativistas de Sergipe, estado natal de Bomfim, a exemplo de Terezinha Oliva, historiadora e professora emérita da Universidade Federal de Sergipe; Fernando Sá e Romero Venâncio, respectivamente professores de História e Filosofia da mesma instituição; Aglaé Fontes, integrante da Academia Sergipana de Letras e pesquisadora da cultura sergipana; Ana Lúcia Vieira Menezes, professora e ex-deputada estadual.

Um inquieto de múltiplas áreas

Nascido em Aracaju, em 8 de agosto de 1868, Manoel Bomfim foi um intelectual com contribuição destacada em diversas áreas do conhecimento. Médico, com estudos em Salvador e no Rio de Janeiro; especialista em Psicologia, com curso na França iluminista; sociólogo; historiador. Em todos os campos de atuação, Bomfim se caracterizou pelo rigor acadêmico aliado à contribuição social das suas pesquisas e trabalhos, confirmando-o como um intelectual atento aos problemas do seu tempo e preocupado em contribuir no desenvolvimento do país.

Na área da educação, Bomfim foi também fundamental na defesa de uma educação pública democrática e popular. Convidado pelo então prefeito do Rio de Janeiro, Francisco Werneck de Almeida, em 1896, Bomfim assumiu o cargo de sub-diretor do Pedagogium, instituição criada seis anos antes para supervisionar as atividades pedagógicas do país à época. Naquele período, pela função que desempenhou, Bomfim formulou diversas iniciativas de reformas e melhorias no ensino público, sendo um crítico do distanciamento entre os planos governistas para a área e a realidade deficitária da educação brasileira. Com o mesmo empenho transformador, Bomfim ocupou, por duas vezes, o cargo de diretor de Instrução Pública no antigo Distrito Federal, entre os anos de 1895 e 1900 e entre 1905 e 1907.

Bomfim buscou denunciar e refletir sobre os problemas do país também via atuação na imprensa, tendo sido editor e articulista de diversos veículos de comunicação, como O Correio do Povo, O Comércio, Ilustração Brasileira, Notícia, Tribuna e O País, além de periódicos especializados em educação, como Revista Pedagógica de Educação e Ensino e Revista Pedagogium.

Demonstrando a sua inquietação com a desigualdade estrutural do Brasil, Bomfim participou também da política nacional, ocupando o cargo de Deputado Federal no lugar de Oliveira Valladão, com um mandato de pouco mais de um ano, entre agosto de 1907 e dezembro de 1908. Candidatou-se à reeleição, mas sem êxito.

Ligada ao Partido Operário Indepedente, Bomfim participou da criação da Fundação da Universidade Popular de Ensino Livre, instituição centrada na educação de jovens e adultos, que representou um marco na luta por um modelo de educação popular no Brasil.

Em termos de produção intelectual e literária, Manoel Bomfim foi, como já dito, dos principais autores sobre a questão do desenvolvimento social e econômico do Brasil e da América Latina, sempre com uma perspectiva crítica e propositiva. Dentre as suas obras, destacam-se: América Latina: males de origem; O Brasil na América: caracterização da formação brasileira; O Brasil Nação: realidade da soberania brasileira; O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação política; Lições e Leituras para o primeiro ano; Crianças e Homens.

Cinema militante

Da mesma forma que a obra de Manoel Bomfim, o cinema de Carlos Pronzato, diretor do documentário “Por que não se fala em Manoel Bomfim?”, coloca o seu fazer profissional a serviço da memória coletiva transformação da sociedade.

Os seus mais de 70 documentários sobre personagens e momentos da história do Brasil e da América Latina são a prova disso, a exemplo de: “O Panelaço, a rebelião argentina”; “Bolívia, a guerra do gás”; “, isto aqui vai virar o Chile, escolas ocupadas em São Paulo”; “Terceirização, a bomba relógio”; “Ocupa Tudo, Escolas Ocupadas no Paraná”; “A Escola Toma Partido, uma resposta ao Projeto de Lei Escola sem Partido”; “1917, a Greve Geral”; “1968, a Greve de Contagem, primeira greve durante a ditadura militar”; “Mestre Moa do Katendê, a primeira vítima”; “A Revolta do Buzu”, “Carabina M2, uma arma americana, Che na Bolívia”, “Madres de Plaza de Mayo, verdade, memória e justiça”, “Marighella, quem samba fica, quem não samba vai embora”, “Pinheirinho, tiraram minha casa, tiraram minha vida”, “Mapuches, um povo contra o Estado”, “A partir de agora, as Jornadas de Junho 2013”, “Dívida Pública Brasileira, a Soberania na Corda Bamba”; “José Calasans, tradutor do Sertão”; dentre outros.

A quantidade e relevância social dos trabalhos de Pronzato – que é também diretor teatral, escritor e poeta, já lhe renderam homenagens do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO), além dos prêmios Roberto Rossellini, em 2009, na Itália, e Liberdade de Imprensa, pelo jornal Tribuna da Imprensa Sindical, do Rio de Janeiro, em 2017.

Ao mesmo tempo em que finaliza “Por que não se fala em Manoel Bomfim?”, Pronzato está prestes a lançar também o documentário “Lama: o crime VALE no Brasil”, sobre o crime ambiental na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais.

Num cenário de flagrantes restrições à liberdade de expressão, de criminalização das lutas populares e de retirada de direitos, a obra de Carlos Pronzato – assim como a de Manoel Bomfim – se afirma como parte fundamental da resistência democrática. Assim, é possível colaborar financeiramente com as obras do cineasta, através de depósito na seguinte conta bancária: Banco do Brasil, agência 0346-8, conta corrente: 222.567-0.

* Paulo Victor Melo - Jornalista, mestre e doutorando em Comunicação e Política. Tem experiência com jornalismo sindical, políticas de comunicação na América Latina, mídias públicas e comunicação e direitos humanos

Texto e imagem reproduzidos do site: expressaosergipana.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário