segunda-feira, 31 de março de 2025

(...) Caso da expulsão dos estudantes do Atheneu em 1964

Imagem reproduzida do Portal Infonet e postada pelo blog, 
para simples ilustração do presente artigo.

Artigo compartilhado do site do JORNAL DO DIA SE, de 29 de março de 2025

As escolhas dos envolvidos no caso da expulsão dos estudantes do Atheneu em 1964
Por Afonso Nascimento

A emergência de um regime político autoritário abre uma nova janela de oportunidades profissionais, políticas, ideológicas que podem ser escolhidas voluntária e involuntariamente segundo as motivações e os posicionamentos dos agentes políticos. Dependendo das escolhas feitas, os indivíduos podem se dar bem, cair em desgraça, ter reforçadas certas predisposições e tendências pessoais nessa ou naquela direção. Acredito que isso pode ser percebido na análise do caso da expulsão dos estudantes secundaristas do Atheneu, em 1964, considerados como fonte possível de “desarmonia social e ideológica” para essa instituição de ensino. Desenvolvo esse argumento em três partes. Trato primeiro do relato dos fatos, apoiado em Ibarê Dantas, José Vieira da Cruz e Wellington Mangueira.

Poucos meses depois do golpe militar de 1964, as relações entre militares e estudantes sergipanos não tomaram o rumo da acomodação. Alguns estudantes foram detidos no 28º. BC e depois liberados. Diretores de escolas promoveram “Marchas com Deus e pela Liberdade” em Aracaju, Barra dos Coqueiros, Laranjeiras, Itabaiana, e outras entre 14 de abril e 2 de maio. (Dantas, p.17 e Vieira da Cruz, p.259-260). Todas elas eram do agrado dos militares e dos setores conservadores da sociedade sergipana.

Em seguida, grupos estudantis organizados entraram em cena. Com efeito, estudantes secundaristas e universitários promoveram uma sessão de cinema no Cine Vitória. Exibiram o filme “Marcelino, Pão e Vinho”. Foi um evento ocorrido no dia 11 de agosto, Dia do Estudante, ao qual estiveram presentes líderes estudantis do Grêmio Clodomir Silva do Atheneu, da União Sergipana dos Estudantes Secundaristas (USES) e da União Estadual dos Estudantes de Sergipe (UEES) (Mangueira). Isso pode ser entendido como uma reação dos estudantes sergipanos em relação ao golpe militar de 1964.

Não muito tempo após esse encontro estudantil, foi realizada uma palestra civil golpista proveniente de Salvador, no auditório do Atheneu. Ela fazia parte da campanha “Plano de Ação Psicológica da Revolução” (Dantas, p.18) dos homens de farda e de coturno que buscavam conseguir legitimidade para si junto às escolas do país. Estranhamente, terminada a palestra, a diretora Maria Augusta Lobão Moreira perguntou à plateia quem concordava com as ideias dos novos tempos trazidas pelo regime militar recém-instaurado. A essa pergunta os seguintes estudantes disseram que discordavam: Wellington Dantas Mangueira Marques, Mário Jorge de Menezes Vieira, Jackson de Sá Figueiredo, José Anderson Nascimento, Abelardo Souza e Silva e Alceu Monteiro. Por incrível que pareça, negar lealdade ao regime autoritário foi motivo para serem expulsos da tradicional instituição de ensino. Todos eles estavam mais ou menos ligados ao Grêmio Estudantil Clodomir Silva, do qual Wellington Mangueira e José Leó Carvalho Filho, eram, respectivamente, presidente e vice-presidente.

O comportamento dos estudantes mencionados provocou a ira do major Francisco Rodrigues da Silveira, comandante do 28º BC, que, do alto da colina do bairro 18 do Forte, determinou à diretora do Atheneu que expulsasse os adolescentes “rebeldes”, através dos ofícios no. 104, de 19 de agosto de 1964, e no. 400, de 01 de setembro de 1964. Aí começou uma crise política entre o quartel e os estudantes, a qual envolveu o próprio comandante do 28º BC, o major Silveira; o “governador” Celso Carvalho; o secretário estadual de Educação Manuel Cabral Machado; e a diretora do Atheneu Maria Augusta Lobão Moreira.

Na pequena Aracaju no começo dos anos 1960, Lobão Moreira deve ter sofrido pressão de seus colegas professores, de estudantes em geral, dos adolescentes expulsos (majoritariamente membros da classe média aracajuana) e – o que parece natural – de seu próprio marido, João Moreira, agente do serviço de informação do novo regime político (Dantas, p.33) A ideia do comandante era fazer uma expulsão ex officio. Sentindo-se muito pressionada, a diretora consultou o secretário de Educação que apoiou a medida militar extremada sem nenhum fundamento legal razoável.

A professora Lobão Moreira então decidiu solicitar uma reunião com o “governador” e o comandante do 28 BC, na qual foi decidida a manutenção da ordem do major Silveira. Nesse jogo de pressões, surgiu a ideia, em seguida aceita, de fazer uma “transferência” ex officio dos estudantes envolvidos para instituições escolares privadas, um eufemismo jurídico para mais um ato de arbítrio da ditadura militar em Sergipe.

Esse episódio ganhou as páginas de pelo menos um jornal de Aracaju, o Sergipe Jornal. Dois secundaristas, Wellington Mangueira e Jackson de Sá Figueiredo, recorreram à Justiça através do advogado Manuel Achiles Lima que, por causa do exercício de sua profissão, foi convocado, em mais de uma vez, a subir a colina do 28 BC para prestar esclarecimentos (Fontes Lima). Entretanto, o mandado de segurança concedido pela Justiça estadual foi descumprido pela diretora Lobão Moreira, que chegou a fechar as portas da instituição de ensino para impedir o acesso dos dois estudantes beneficiados pelo socorro judicial (Dantas, p.90).

Entro agora na segunda parte deste texto. Quais as opções e as escolhas feitas pelas autoridades envolvidas nesse episódio. Começo naturalmente pelo comandante do 28º BC, o major Franciso Rodrigues Silveira, um golpista de primeira hora, ultra reacionário, que declarou certa vez que a “Revolução” (como era chamado o golpe de Estado pelos militares e seus seguidores civis) errou ao não fazer derramar sangue (Dantas, p.31). É razoável pensar que o comandante estava muito bem informado sobre o que pensavam ou falavam os estudantes do Atheneu. Com seu poder derivado das armas, deve ter esperado, no mínimo, alguma menção honrosa de seus superiores na hierarquia da caserna.

O interventor Celso Carvalho foi levado ao posto de “governador” de forma completamente ilegal. Político conservador, ele era advogado, membro do Partido Social Democrático (PSD), banqueiro e empresário ligado à pecuária (Nascimento, p.195). Teve a opção de dizer “não” aos militares e ficar solidário ao seu colega político Seixas Dória e à ordem legal e democrática, dizendo que ali não se tratava, juridicamente, de uma sucessão dentro da lei, porque esta tinha sido quebrada com o golpe de Estado. Era o “governador” que sabia que o poder real estava na guarnição federal. Aceitou jogar com as regras do arbítrio e se deu bem.

Também membro do PSD, Manuel Cabral Machado era político conservador, professor universitário, oriundo da aristocracia rural sergipana (Nascimento, p. 15). Servia ao novo regime autoritário com zelo. Carimbou a decisão do major Silveira e aceitou que, na portaria da “transferência” dos estudantes, contivesse o seu explícito acordo com a medida fora da lei. Continuará a sua carreira política bem-sucedida no regime autoritário na Faculdade de Direito e na política estadual, sendo premiado mais tarde com o posto de primeiro presidente do Tribunal de Contas de Sergipe, inaugurado em 1968, durante a interventoria de Lourival Baptista, de quem era o seu vice.

Enquanto “exaltada revolucionária”, como foi chamada por Manuel Cabral Machado, Lobão Moreira sempre é lembrada por causa desse fato histórico. A sua trajetória profissional até tornar-se funcionária pública estadual (professora do Atheneu) merece uma pequena digressão. Para conseguir emprego de datilógrafa no Tribunal de Justiça, ela ocultou a sua verdadeira idade que era de 15 anos e não de 18 anos. Em seguida, passou por algumas instituições de ensino. Não possuía diploma superior. Mesmo assim (com uma certa autorização), inscreveu-se para concurso de História Geral no Atheneu, numa competição que oferecia apenas uma vaga. Foi reprovada, sendo o vencedor José Silvério Leite Fontes. Ela então partiu à procura do chefe da União Democrática Nacional (UDN), Leandro Maciel, que a recebeu e apadrinhou a abertura de uma segunda vaga com o acordo do governador ex-udenista Seixas Dória (Nascimento, p.184), por quem também foi nomeada diretora do Atheneu mais tarde. Essa nomeação aconteceu porque José Silvério Leite Fontes recusou o convite do governador Seixas para ocupar a direção do Atheneu. Foi ela que, depois do golpe de 1964, em um gesto inglório, assinou a expulsão ex officio dos seis estudantes (Chagas Filha, p 26 e seguintes).

O que a professora Lobão Moreira poderia ter feito e escolheu não fazer? Durante a sua passagem pelo Atheneu, ganhou fama de boa professora e como administradora. Ao invés de assinar a portaria ilegal da expulsão dos estudantes, ela poderia renunciar ao cargo de diretora do Atheneu. Mas o que fez foi buscar apoios políticos para justificar a sua decisão sabidamente fora da lei. Em assim fazendo, prestou um grande serviço ao novo regime autoritário que apenas começava, tornando-se doravante uma leal servidora dele. Foi mais longe, na verdade. Foi alçada à condição de ideóloga da ditadura militar ao fazer palestras para a Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), a Maçonaria (uma instituição que apoiou o golpe e a ditadura que se seguiu) e para outras instituições em datas cívicas, conforme Chagas Filha no seu trabalho elogioso a Lobão Moreira . Ela parece ter feito escolhas de coerência ideológica familiar, já que seu marido mencionado era agente do Serviço Nacional de Informação (SNI).

Nesta terceira parte, trato dos estudantes expurgados do Atheneu. Eles não tinham muitas opções sobre o que fazer, a não ser procurar escolas que quisessem aceitá-los em Aracaju ou fora de Sergipe, uma vez que recorrer ao judiciário tinha deixado de ser uma opção. E foi isso o que aconteceu. Os estudantes José Anderson Nascimento e Alceu Monteiro foram estudar em Recife e os outros quatro foram admitidos, como já escrevi acima, em escola privada e religiosa de Aracaju. Dos seis estudantes expulsos, cinco frequentaram os bancos da Faculdade de Direito (os quais, com a exceção de Mário Jorge Vieira de Menezes, todos concluíram o curso) e um pela Faculdade de Letras da UFS. Os seis estudantes não eram filiados a partidos ilegais ou clandestinos em 1964. Mais tarde, quatro se tornaram membros do Partido Comunista Brasileiro (Mário Jorge de Menezes, Wellington Mangueira, Jackson de Sá Figueiredo e Abelardo Souza e Silva), dois quais (Wellington Mangueira e Jackson de Sá Figueiredo) foram fazer curso de formação política em Moscou. Embora tendo que responder a processos por vários anos, José Anderson Nascimento escolheu se acomodar, exerceu a advocacia, tornou-se juiz de direito e professor de Direito da UFS. Atualmente, é presidente da Academia Sergipana de Letras. Por último, Alceu Monteiro foi professor de Letras e conhecido radialista sergipano, ligado ao PSB.

Nesta última parte, quero retomar um personagem envolvido na crise da expulsão dos secundaristas do Atheneu em 1964, José Leó Carvalho Filho, já mencionado, que foi esquecido por historiadores que trataram do assunto. Em minha modesta opinião, a narrativa do expurgo fica incompleta sem a inclusão de seu nome, porque ele deveria ser o sétimo estudante a ser expulso e não foi. Ele fazia parte da gestão do Grêmio Clodomir Silva, na condição de vice-presidente de Wellington Mangueira. De novo, aqui me pergunto quais eram as suas opções e quais foram as suas escolhas.

Para escrever sobre esse personagem excluído, consultei várias pessoas, a saber, José Anderson Nascimento, Wellington Mangueira, Clara Angélica Porto, Ana Lúcia Vieira Menezes e o próprio José Leó Carvalho Filho e notícias encontradas na Internet. Fiquei sabendo que ele é lagartense, jornalista com passagens em diversos órgãos de comunicação de Aracaju, muito ligado à vida esportiva e que ocupou cargos comissionados em governos municipal e estadual.

Em 1964, o adolescente José Leó Carvalho Filho ficou fora da lista do major Silveira. Por quê? Ele gozava da intimidade política do grupo excluído. Quando seus colegas foram expulsos, ele poderia ter sido solidário com eles e, em protesto, também ir estudar no Colégio Arquidiocesano. Renunciar ao posto de vice-presidente do grêmio estudantil também se apresentava como opção, uma vez que ele tinha sido eleito legalmente na chapa de Wellington Mangueira. Uma vez quebrada a legalidade na direção do grêmio, ele, como Celso Carvalho no Executivo sergipano, não poderia ser o sucessor legal de Wellington Mangueira, mas um interventor (Mangueira) da professora Lobão Moreira e do major Silveira no grêmio estudantil. Ganhou, por causa disso, o desprezo de seus colegas. Na entrevista telefônica a mim concedida, negou-se a falar desse episódio.

Ademais, ele não poderia jamais aceitar o emprego de secretário do Atheneu, sem concurso, porque isso levantaria perguntas sobre o seu comportamento no caso da expulsão dos seus seis colegas. E ele aceitou (Mangueira e Leó Carvalho Filho). Optou por não ficar do lado da resistência ao regime militar – o que era um direito dele. Para terminar, preciso reforçar que José Leó Carvalho Filho permanece sendo um personagem a esperar pesquisas dos historiadores nos inquéritos dos estudantes no 28º BC e nos livros de atas do Grêmio Clodomir Silva e da Direção e da Congregação do Atheneu.

--------------------------------
* Afonso Nascimento, professor de Direito da UFS

FONTES CONSULTADAS

DANTAS, Ibarê. A tutela militar em Sergipe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
VIEIRA DA CRUZ, José. Da autonomia à resistência. Movimento estudantil, ensino superior e sociedade em Sergipe. Maceió: EDUCAL, 2017.

FIGUEIREDO, Ariosvaldo. História Política de Sergipe (1962-1975). V Volume. Aracaju: sem editora, sem data.

NASCIMENTO, Afonso. Ensaios sobre política e políticos. Aracaju: Editora Criação, 2016.

NASCIMENTO, Afonso. Entrevista com Manuel Cabral Machado. In Revista TOMO. São Cristóvão, no. 01, 1998.

CHAGAS FILHA, Rivanda Maria Costa. A trajetória de Maria Augusta Lobão Moreira na educação sergipana.1917-2001. Aracaju.2003. Monografia em Pedagogia (Universidade Tiradentes), 2003.

Entrevistados: José Anderson Nascimento, Wellington Mangueira, José Leó Carvalho Filho, Lúcio Sérgio Fontes Lima, Ana Lúcia Vieira Menezes, Clara Angélica Porto.

Texto reproduzido do site: jornaldodiase com br

domingo, 30 de março de 2025

"Hermes-Fontes: um poeta e gênio atormentado", por Acácia Rios

 Legenda da foto: O sergipano de Boquim, Hermes Fontes

Artigo compartilhado do site SÓ SERGIPE, de 21 de fevereiro de 2025 

Hermes-Fontes: um poeta e gênio atormentado
Por Acácia Rios (*)

E saber que eu julguei que essa insensível 

pudesse amar-me como a um seu irmão! 

e possibilitei nesse impossível 

dar forma eterna à minha aspiração! 

Esfinge, esfinge! desgraçadamente.

maior, mais vasto que o deserto ambiente 

é o deserto que tens no coração.

Esfinge, Hermes Fontes

Onome Hermes-Fontes atravessa a vida dos aracajuanos. As inúmeras placas ao longo dos seus 4 quilômetros, aproximadamente, não deixam esse sergipano de Boquim passar despercebido. Ainda mais para uma criança que acabara de aprender a ler. O mundo se me abria e as placas se tornavam parte do meu jogo do contente, que, no trajeto da antiga Cohab ao Centro, consistia em admirar as belas casas da avenida e memorizar os outros nomes com os quais a longa via fazia esquina. 

Anos depois, Hermes-Fontes (o autor grafava seu nome com hífen, sintetizando assim o de batismo: Hermes Floro Bartolomeu Martins de Araújo Fontes) saltaria da placa para a página de um livro. Eis que me vejo diante de ‘A taça’ (título pelo qual ficou conhecido), um poema visual que faz uma ode a esse objeto. 

Tornou-se o poema mais conhecido dele, presente em várias antologias, uma delas a de José Costa, que foi meu professor de Literatura Brasileira na UFS e organizou o livro Antologia poética de Hermes Fontes, editada pela Secretaria de Estado da Cultura em 2004. 

A descrição da taça, que vai se confundindo progressivamente com uma mulher, é carregada de sensualidade e musicalidade. Começa e termina com versos dodecassílabos (doze sílabas), mas a métrica varia ao sabor do desenho da taça, estreitando a rima na haste, de forma que temos versos de apenas uma palavra, como o leitor pode observar. 

A característica heterométrica (métricas diferentes) é o que o aproxima da poesia moderna. Essa sua versatilidade (e criatividade poética, diga-se de passagem), permitia-o transitar entre escolas.

Pouco acima daquela alvíssima coluna

que é o seu pescoço, a boca é-lhe uma taça tal

que, vendo-a, ou vendo-a, sem, na realidade, a ver,

de espaço a espaço, o céu da boca se me enfuna

de beijos — uns, sutis, em diáfano cristal

lapidados na oficina do meu Ser;

outros — hóstias ideais dos meus anseios,

e todos cheios, todos cheios

do meu infinito amor…

Taça

que encerra

por

suma graça

tudo que a terra

de bom

produz!

Boca!

o dom

possuis

de pores

louca

a minha boca!

Taça

de astros e flores,

na qual

esvoaça

meu ideal!

Taça cuja embriaguez

na via-láctea do Sonho ao céu conduz!

Que me enlouqueças mais… e, a mais e mais, me dês

o teu delírio… a tua chama… a tua luz…                                                           

Multifacetado, era considerado ao mesmo tempo parnasiano (ou neoparnasiano, segundo Otto Maria Carpeaux), simbolista e pré-modernista. Esse hibridismo estético o caracterizava. Também pudera, viveu num momento não só de grande efervescência cultural o Rio de Janeiro como também de mudança estética na literatura, proporcionada pela Semana de Arte Moderna de 22. 

No Rio de Janeiro, conviveu com poetas de diferentes correntes e o ambiente de interlocução impregnou-o de diversas maneiras. A sua estreia, com o livro Apoteoses, projetou-o nacionalmente e chamou a atenção de João Ribeiro, Silvio Romero, Rocha Pombo e Olavo Bilac, só para citar alguns. “É Hermes-Fontes um moço, quase um menino, cujo livro Apoteoses é uma revelação de força lírica.”, disse Bilac, conforme menciona Assis Brasil em seu livro A poesia sergipana no século XX (1998).

Além de poeta, jornalista e cronista, era caricaturista e letrista. Suas caricaturas apareciam nos jornais O bibliógrafo, Tagarella e Brasil Moderno. Por meio dessa linguagem, satirizou a vacina obrigatória, a lei do Expurgo e o Código Civil. Também se posicionou em relação à Campanha Civilista em favor de Rui Barbosa e, posteriormente, da Revolução de 30. Quanto às suas composições ‘Luar de Paquetá’ e ‘À beira mar’, foram gravadas por Vicente Celestino e podem facilmente ser acessadas na internet. 

Participou da organização da Academia Sergipana de letras e foi fundador da cadeira 16, cujo patrono foi Pedro de Calasans. Em seu Dicionário Biobibliográfico sergipano (1925), Armindo Guaraná nos informa que ele também foi membro correspondente da Academia Piauiense de Letras.

Um pouco do homem 

A biografia de Hermes-Fontes é comovente. Nasceu em Boquim, região sul de Sergipe, em 1888. Aprendeu as primeiras letras em pouco tempo e foi levado para estudar em Aracaju aos 8 anos. Sua genialidade chamou a atenção de professores e figuras conhecidas, notícia que logo se espalhou pelo estado. De acordo com Ana Medina, em Cartas de Hermes Fontes: angústia e ternura (2006), “aos oito anos já era uma revelação, um prodígio de memória, lia jornais como se fosse um adulto e possuía grande talento para a música e o desenho”.

Tanto talento junto chamou a atenção do então presidente do Estado, Martinho Garcez, que o adotou, levando para o Rio de Janeiro com apenas 10 anos. Na capital federal, os estudos avançaram às expensas da família Garcez, mas tão logo pôde buscou a sua independência. Fez um concurso para os Correios, passando em primeiro lugar. Entrou na faculdade de Direito e foi morar numa pensão, onde conheceu Alice, o amor da sua vida, que representa um capítulo à parte na sua história.

O poeta perdeu a mãe nos primeiros anos da infância e foi arrancado do seio familiar muito jovem. Se a capital sergipana já era uma separação da cidade natal, imagine o Rio de Janeiro. Nas cartas dirigidas à família (com quem manteve longa correspondência epistolar), relatava a saudade da terra. Isso está demonstrado no livro Despertar! (1922), que ele dedica a “Sergipe, terra dos meu berço” e aos pais. 

As cartas, que estão no Museu Raimundo Fernandes da Fonseca, em Boquim, revelam também que ele era arrimo de família. Sistematicamente, enviava quantias junto com as correspondências, em que sempre pedia notícias dos familiares, vizinhos e amigos.

Apesar de boa recepção crítica (publicou 11 livros em total) e de uma vida profissional intensa, Hermes-Fontes foi acumulando alguns dissabores ao longo da vida. Tentou entrar para a Academia Brasileira de Letras cinco vezes e, em todas elas, foi rechaçado. Também desejava ser Príncipe dos Poetas Brasileiros. No campo político, tentou ser deputado, mas não conseguiu. 

Casou apaixonado, mas o sentimento não era correspondido à mesma altura. Sua mulher engravidou, mas perdeu a criança. Anos depois, soube que havia sido traído por ela e por pessoas próximas. Separaram-se, mas ainda nutria sentimentos por Alice. Além de tudo, tinha complexo de ‘físico acanhado’, pois media pouco mais de um metro e meio. Uma autorreferência à sua altura é o pseudônimo P.Q. Nino. Às vezes assinava com as iniciais H.F., ou F.H., invertidas. Leo-Zito, Leléo, Léo-Fábio, Rems, Rins e Roms também eram usados pelo poeta. 

O poema ‘Esfinge’, cuja estrofe encabeça esta crônica, foi escrito por ele com o coração dilacerado. Era um homem romântico e, mesmo depois da separação, ainda se preocupava com o bem estar da sua amada, apesar de o coração dela ser um deserto, como diz o último verso.

Toda essa solidão, expressa na sua obra, culminou em uma profunda tristeza. Antes de suicidar-se com um tiro na cabeça, aos 42 anos, queixara-se com os amigos acerca do seu envolvimento na Revolução de 30. Mas diante da sua baixa autoestima e de tantas decepções, a amorosa sendo a pior de todas, tudo leva a crer na desilusão em relação à própria vida.

Cruzo diuturnamente a avenida Hermes Fontes, essa artéria sem a qual Aracaju não seria a mesma. Atravesso também as doze letras que compõem o seu nome e chego ao homem, esse poeta e gênio atormentado repleto de ternura.

---------------------------------

* Acácia Rios é jornalista, escritora, professora, mestra em Memória Social e Documental pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e doutora em Ciências da Documentação pela Universidade Complutense de Madri. Leciona na Escola de Artes Valdice Teles.

Texto e imagens reproduzidos do site: www sosergipe com br

terça-feira, 25 de março de 2025

"Aracaju faz cem anos", por Maria Rita Soares de Andrade

 


Imagens reproduzidas do Google e postadas pelo blog

Artigo compartilhado do site DESTAQUE NOTÍCIAS, de 16 de março de 2025

Aracaju faz cem anos
Por Maria Rita Soares de Andrade*

(Artigo publicado pela jurista sergipana no Jornal do Brasil, em 17 de março de 1955, em homenagem ao centenário da capital sergipana. Artigo localizado pelo pesquisador, jornalista e escritor Gilfrancisco)

Cristóvão de Barros invadira o reduto do Cacique Serigi, fundara a Cidade a que dera o nome, que se tornou a capital da Província.

Cinco léguas adiante surgiu o Arraial de Santo Antônio do Aracaju. “Tempo dos Cajueiros”,  “Cajueiro dos papagaios”, “Terra dos cajueiro”, o fato é que do acaju-tupi – por cuja sombra  e por cujos frutos as tribos se guerreavam, lhe deram o nome.

Cristóvão, a capital, montanhosa e triste, no Vale do Vaza-Barriz, fez-se a sede do governo. Teve, também, os primeiros engenhos. Os surtos das invasões holandesas fizeram-na construir como uma fortaleza. A posição geográfica começava a entrava-lhe o desenvolvimento. O Vale do Cotinguiba, já em 1832, a superava na produção do açúcar. Tanto que houve um projeto, na Assembleia provincial, mudando a capital para Laranjeiras.

Em 1855, Inácio Barbosa, Governador, em viagem de inspeção, chegou à margem do Rio Sergipe, ao Arraial de Santo Antônio do Aracaju. Viu a baia ampla. Descortinou, da Capelinha, a barra aberta. Lembrou, então, o projeto de 1832. Mudar a capital do Vale do Vaza-Barriz para o estuário do Sergipe, que já produzia mais de 25.000 sacos de açúcar anuais. A planície perdia-se abaixo, por duzentos e sessenta quilômetro quadrados. O porto, profundo, na enseda, com barra franca, Atalaia afora, incentivaria o progresso. Do sonho à ação não durou muito. A 21 de fevereiro, do Engenho “Unha de Gato”, convocava a Assembleia   para uma reunião extraordinária. A Câmara de S. Cristóvão protestou. Mas a vontade férrea do Governador prevaleceu e a 17 de março já sancionava a resolução de mudança da capital. Ficava a Vetusta, senhorial S. Cristóvão, com seus templos imponentes, suas construções coloniais, suas fontes térmicas, como monumentos histórico, e o nervo da política, do governo, do comércio, da indústria, se deslocava para o novo centro, a disputar a sobrevivência aos riachos, aos pântano, às lagoas, com seus exércitos de pernilongos a dizimarem intrusos. Muitos pagaram com a vida a ousadia. O Governador foi um deles. O paludismo o matou.
A civilização invadiu no Arraial do índio João Mulato. E um de seus melhores poetas o lamenta:
Agora,

A cidade não é tão simples como outrora

……………………………………………………

Não mais cavalos, na segunda-feira,
amarrados à porta do Mercado;
nem tipos de rua; e graça alvissareira
dos “moleques” gritando a venda do queimado.
(Passos Cabral)

Aracaju mudou o traje. É uma cidade moderna. Ruas largas e longas. Jardins. Praças amplas. Sobre a vasta planície, contrastam-lhe a paisagem três morros apenas: Santo Antônio – marco inicial da cidade – Cruzeiro e Urubu. Só o primeiro é habitado. O mais pitoresco recanto da cidade: Belo e Poético. É o Parnaso de Garcia Rosa, o peripatético que o ilustra, verdadeiro imã de inteligências. Tem sio fonte de inspiração. Ali floriram sempre.

Os romances de amor eternos com a dor…

Sobre os cajueiros d as mangueiras de Santo Antônio, Jackson de Figueiredo sonhou, acordou e predicou. Passos Cabral alcantilou o estro. Hermes Fontes cantou poemas. Amando Fontes viveu e delineou “Corumbas” e planejou “Rua de Siriri”. Barreto Filho desenvolveu sua profundeza filosófica. Jordão de Oliveira deixou-se dominar pela natureza, e começou a traduzi-la na tela, a pincel.

A cidade civiliza-se. O morro de areia branca atenção encantadora da gente de antanho, quase desapareceu. As ruas largas, calçadas, deixam deslizar automóveis estilizados. Os bondes de burros foram substituídos, por Graccho Cardoso, pelos elétricos, embora parcos e morosos. Seus veículos básicos são as “marinetes”. Surgiram com o futurismo, de Marinetti, em lhe adotaram o nome.

A cidade possui sua história. Foi teatro de feitos heroicos, Fausto Cardoso, abrindo o peito, em praça pública, tomba a lutar co0ntra a opressão. Maynard Gomes levantou duas vezes o 28 BC. Em 1924, com Eurípedes, Messias e Soarino, depôs o Governador. Constituiu um governo revolucionário. Abriu trincheiras. Combateu as forças federais. Depois em 1926, preso, sublevou mais uma vez o Batalhão. Atacou o Palácio, a Força Pública. Estas as revoluções de nossa época. Outras viveu a cidade. Em 1891, com a deposição do Presidente Vicente Ribeiro. Em 1894, com a do capitão José Calazans, um dos melhores homens de seu tempo e de sua classe. Em 1896, com a deposição e reposição do Padre Dantas. A rebelião é do sangue de nossas vidas. Não houve, ainda, movimento de reformas, de reivindicação, no Brasil, do qual estivesse ausente algum dos nossos. Mesmo dos mais absurdos.

Aracaju é produto hercúleo, exclusivo, dos sergipanos. Seu clima tropical e a pobreza de seu solo jamais atraíram imigrantes. Nem o poder federal tem preocupação de prova-lo. Tudo lá é mão-de-obra do caboclo.

O que lhe deu foros de capital foi o porto. Sua honra. Seu orgulho. A cidade, de praças amplas, ajardinadas, ruas calçadas, com suas retretas às quintas e domingos, inspiradoras de poetas e de romances de amor, perdeu essa razão de sua “pedanterie”. Os Comoros de areia entupiram-lhe a barra. Bastaria, para abri-la, draga-la. O mais é com o Atlântico, que se arrebenta nas praias da Atalaia.

Mas que é e que vale um Estado de apenas 30 mil quilômetros quadrados, com menos de um milhão de habitantes, nesse Brasil intenso, para que uma draga do Departamento de Portos e Canais perca tempo em lhe desobstruir a barra, ainda que, abandonado e só, ele oferece ao centro e sul do País alguns milhões de frutos de seus coqueirais, sal, açúcar e tecidos em profusão? Há mais de uma década isto perdura. Seus cômoros de areias são cemitérios de navios. Usinas de açúcar, da zona do Cotinguiba, foram desmontadas e vendidas para o Sul. Essa exportação era sua riqueza.

Apesar de tudo, a cidade vive. Cresce. Amamo-la pobre como é. As amoras e os crepúsculos não mudaram. O raiar e o morrer do sol, da capelinha de Santo Antônio… Que espetáculo! As noites enluaradas no mar ao longe! Aracaju é uma bonita cidade. Bela e simples. Não sofreu muito o impacto d desintegração atual. Sua pobreza é inteligente. Não lhe faltou nem mesmo um “Mecenas”. O velho Cel. José da Silva Ribeiro transformou seu solar num centro literário. Da “Hora Literária” surgiu a Academia de Letras. Hoje, aquele solar, por iniciativa de Rubens de Figueiredo, é o Convento dos Franciscanos. Sergipe resgatou com a Ordem dos Frades Menores um pouco do débito de que é credora, porquanto tem colaborado na sua formação.

A criação da Diocese de Aracaju, em 1910, constituiu um fato auspicioso. D. José Thomaz Gomes da Silva deixou, como Bispo um nome e uma obra. Basta dizer que formou esses dois ilustres prelados: D. Mário de Miranda Villas-Boas, Arcebispo de Belém, e D. Avelar, Bispo de Garanhuns. Hoje está confiada a D. Fernando Gomes, de cujo apostolado é de destacar-se a obra de recuperação dos mendigos, com na fundação e a manutenção do SAM.

A igreja plantou em Sergipe o embrião de uma humana reforma agracia. Itabaiana e Lagarto são testemunhos disso.

Quando nossa cidade foi elevada, a capital, a velha S. Cristóvão rebelou-se. João Bebe Água, com 400 homens, quis resistir. Ante a impossibilidade, guardou os foguetes da vitória até a morte, invocando sempre:
Cristóvão passageiro,
Santo de fazer milagre,
Pelo amor dos sergipanos,
Fazei voltar a cidade.

Hoje, Aracaju faz cem anos. 

Centenária, numa cidade é juventude, Florência. No homem, velhice, decrepitude.

A terra do chefe João Mulato (1669) venceu a de João Bebe Água (1855) por causa do porto.

Hoje, João Bebe Água poderia soltar seus foguetes, mesmo sem a cidade voltar, pois, sem o porto, o arraial dos cajueiros sofre no seu orgulho de porta do coração do Brasil – Sergipe. As pragas dos cristovenses pegaram.  Também, eram desse teor:

Quem for para Aracaju
Leve terço pra rezar,
Que Aracaju é a terra
Onde as almas vão penar.
As águas de S. Cristóvão
Só parecem de cristal.
As águas de Aracaju
Só parecem rosargal!

A aniversariante nasceu assim. Improvisada. Combatida. Pantanosa. Palustre. Saneou os pântanos. Venceu o impaludismo. Criou uma mentalidade. Uma cultura. Hoje possui, graças a Diocese, duas Faculdades: Filosofia e Direito. Escolas de química, de comércio e finanças. Seu curso primário é dos melhores do País. Seu índice de alfabetização, dos mais elevados. Seus estabelecimentos industriais sobem a 350. Suas fazendas de coqueiro, a 250. Sua produção de coco é metade d do Estado, que, por sua vez, é a maior, por unidade, do Brasil. Não obstante, todo coco, no Sul, é da Bahia.

Aracaju faz cem anos.

Quando numa família um dos ascendentes completa essa idade, todos os ramos da prole se reúnem para homenageá-lo. Dão-lhe ricos presentes. Qual o presente que a centenária mais estimaria? Sugerimos que todos nós, que emigramos, para subsistir, durante o ano do centenário, não demos tréguas ao Governo da República até que este mande dragar a barra e construir o porto. Por causa do porto, Inácio Barbosa transformou um pântano numa das mais encantadoras cidades do Nordeste. Por falta do porto não podemos deixar, cem anos depois que ela pereça.
Terra de poetas, nela quanto mais se sofre mais se ama e canta:

Areia do Aracaju: Pó aos luares.

Diz Freire Ribeiro, no introito de seu poema – Feira do Aracaju:

Feira do Aracaju Mercado cheio!

Nossos patrícios doutras plagas notam o contraste entre a pobreza de Sergipe, particularmente da zona praieira – que só dava “guaiamuns e melancia” – com a resistência do sergipano. É por desconhecerem nossa maneira de viver.

De manhã, quando almoço,

Cuscuz com leite e café   (P. C.)

Eis o segredo. A vitamina do milho. O fósforo do massunin, do aratu, do sarnambi. O tônico do cafu, disputado, a arco e flecha, pelos indígenas. Mas, aos cem anos de idade, Aracaju, com seus enormes coqueirais – do coqueiro, até quando morre, nada se perde – suas salinas, suas fábricas de tecidos, seu açúcar do Cotinguiba, está trançada para o resto do Brasil. O porto, inacessível. Sua única ferrovia, precária e deficiente. Resta-lhe, exclusivo, o transporte rodoviário, antieconômico, como afirma o Ministro da Fazenda. Mas o único de que dispõe para seu intercâmbio comercial. Com a gasolina mais cara cem por centro e o aumento dos fretes, como poderá competir no mercado? Impossibilitada de disputar na concorrência industrial e comercial, restar-lhe-á, simplesmente, continuar mandando, em paus-de-arara, aquilo que Sergipe tem sempre semeado por todo o País: cabeças e braços para engrandecer o Brasil.

E como engrandeceu!

Que diga o Jornal do Brasil, onde mestre Annibal Freire exerce a cátedra que ilustrou e dignificou em Recife e valorizou no Supremo Tribunal.

Aracaju faz cem anos.

Parabéns, Aracaju!

* Maria Rita Soares de Andrade nasceu em Aracaju, em 3 de abril de 1904, e formou-se pela Faculdade de Direito da Bahia (bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais) em 1926. Militante feminista, dirigiu entre 1931 e 1934 a revista Renovação. Em 1938 mudou-se para o Rio de Janeiro para atuar como consultora jurídica da Federação Brasileira para Progresso Feminino. Destacou-se como professora de Literatura e Direito Processual Civil e abriu escritório de advocacia com duas mulheres, no qual defendem causas políticas de perseguidos pelo regime do Estado Novo. Tornou-se, em 1967, a primeira juíza federal do Brasil. Também foi a primeira mulher a integrar o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Maria Rita faleceu no Rio de Janeiro em 5 de abril de 1998, aos 94 anos, deixando um legado de conquistas no mundo jurídico, principalmente na consolidação feminina no Poder Judiciário.

> O texto em questão encontra-se incluído no livro de Gilfrancisco “Advogados: Bacharéis em Ciências Jurídicas e Sociais de Sergipe”.

Texto compartilhado do site: www destaquenoticias com br

terça-feira, 18 de março de 2025

A última lição do mestre José Abud

Legenda da foto: Doutor José Abud: com ele, morreu um pouco da humanidade - (Crédito da foto: reprodução com arte, de post no Facebook/Domingos Pascoal  e postada pelo blog, para ilustrar o presente artigo).

Artigo compartilhado do site JLPOLÍTICA, de 17 de março de 2025

A última lição do mestre José Abud
Por Déborah Pimentel *

"Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (Paulo Freire).

Falar sobre o Dr. José Abud é revisitar um tempo de aprendizado intenso e exigente, uma época em que a propedêutica era ensinada com rigor e paixão por aqueles que compreendiam que a Medicina não era apenas técnica, mas também arte.

Para os que passaram por seus ensinamentos, ele não era apenas um professor. Era um mestre que exigia o máximo, pois sabia que o exercício da Medicina não permite superficialidades.

Fui sua aluna nos tempos de faculdade, na disciplina que molda a base de um médico: a Propedêutica. Aprendi com ele que examinar um paciente vai além de verificar sintomas e sinais físicos; é compreender a história que aquele corpo conta, a sutileza dos detalhes que fazem a diferença no diagnóstico e no cuidado.

Os anos passaram e quando fui presidente da Academia Sergipana de Medicina a vida nos proporcionou um reencontro. Dessa vez, não mais como professor e aluna, mas como colegas na Sociedade Brasileira dos Médicos Escritores, onde contribuímos juntos para todas as edições publicadas, em todas as antologias. Entre elas, recordo com carinho o lançamento da primeira antologia Vida, no Museu da Gente.

Naquela noite especial, meu conto Vida, Morte e o Morrer encontrou nele um dos seus leitores mais exigentes e generosos. A narrativa, que descrevia uma professora de Ética Médica recebendo de um ex-aluno - agora seu médico assistente - a notícia delicada de que estava com câncer, tocou profundamente Abud.

Como geriatra, ele conhecia o peso das más notícias e, ao final da leitura, disse-me algo que me emocionou profundamente: passaria a usar o passo a passo da comunicação descrito no conto como referência para lidar com seus próprios pacientes.

Receber aquele reconhecimento de um mestre tão rigoroso e exigente foi um dos momentos mais gratificantes da minha vida. José Abud e José Augusto Bezerra foram, sem dúvida, os professores que mais desafiaram minha geração.

Suas notas eram conquistadas com suor, esforço e dedicação. Eu nunca me considerei a mais brilhante da turma, mas sempre fui disciplinada e estudiosa.

Entre os professores que marcaram minha jornada, Abud, com seu jeito durão, sempre me elogiava - primeiro nos bancos escolares, depois como colega. Décadas depois, reencontrá-lo e vê-lo reconhecer em meu texto um ensinamento aplicável na prática médica foi um momento que uniu nossas trajetórias de uma maneira inesperada e profundamente emocionante.

Dr. José Abud não era apenas um mestre da propedêutica. Ele era um mestre da humanidade. Exigia perfeição porque sabia que a vida de um paciente depende da excelência técnica, mas também do acolhimento, da escuta, da presença sensível do médico. Sua memória permanecerá viva em todos aqueles que tiveram a honra de aprender com ele, dentro e fora da sala de aula.

Hoje, escrevendo este texto, celebro o legado de um professor que não apenas ensinou a examinar um paciente, mas também a enxergá-lo em sua totalidade.

A Medicina se despede de um grande mestre, mas sua essência permanecerá em cada um de nós que tivemos o privilégio de ser tocados por sua sabedoria e generosidade. Como médicos, como professores e como seres humanos, seguimos construindo, aprendendo e ensinando.

Afinal, como disse Paulo Freire, ensinar é criar possibilidades. E José Abud fez isso com maestria. Como sua aluna e colega, carrego suas lições e, agora, também como professora, desejo seguir seu exemplo, deixando meu próprio legado. Que meu ensino, assim como o dele, inspire, transforme e prepare não apenas médicos, mas seres humanos capazes de enxergar além do óbvio.

* Articulista Déborah Pimentel - É médica, pesquisadora da saúde mental e psicanalista. 

Texto reproduzido do site: www jlpolitica com br