quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Chorando ainda por Nina

Nina como está no meu livro “Despercebido… 
mas não indiferente.”

Publicado originalmente no site do Portal INFONET, em 5 dezembro de 2019

Chorando ainda por Nina
Por Odilon Machado

Encontrei com Luiz numa loja de sapato.

La vinha ele, a esposa na frente, ele com um boné na cabeça, olhos escuros na face, meio perdido no lusco-fusco da loja, escurecido pelo óculos que permite olhar, sem desvendar, poder até fingir, não reconhecer, nem identificar, o que não se quer, por melhor escolher.

– Luiz! – gritei eu para seu espanto.

Luiz era o mesmo Luiz Santana, que eu identificara nos meus escaninhos de lembrança, após tantos anos passados.

Luiz olhou para mim, estendeu a mão com uma desconfiada gentileza, logo despertada por um coração que vibrou alegre, radiantemente rejuvenescido.

– Odilon! Odilon Cabral Machado, nós fomos Professores Eméritos juntos!

– Pois é! – adiantei rápido – E eu fui o orador da solenidade, nos quarenta anos da nossa Universidade Federal de Sergipe!

– Odilon! – disse-me ele – Nina, sua irmã, será homenageada no dia 8 de dezembro próximo, por ocasião das “Bodas de Ouro” de nossa formatura como Bacharéis de Direito!

A memória me trouxe Nina de volta, seus sonhos, seus desejos, tudo aquilo que fora perdido, vivido e jamais esquecido, cinquenta anos passados, o que me leva a tomar como tema, chorando ainda por ela, em meio à alegria de seus colegas, como Luiz, que a vida permitiu comemorar o justo jubileu de ouro.

Peço licença a meus leitores para externar um pouco do que me assoma a alma e a lembrança, momentos que me são mais íntimos, mas que merece o destaque, o compartilhamento, puro e simples, mesmo que possa parecer bobo e até desnecessário.

Mas, o que é desnecessário? – Pergunto eu, um velho tolo, que teima em rejeitar a gaveta dos usados e obsoletos, os mortos arquivos de desusados destinos a reter poeira e traça nos armários.

Desta irmã, a título de recordação e não obituário, direi que seu nome era Nina Maria Cabral Machado, nascida em 11 de março de 1946, na Rua de Pacatuba em Aracaju, filha de Maria de Lourdes e Manoel Cabral Machado, nossos pais.

O nome, como era comum na minha família, era uma homenagem a nossa avó paterna, Professora Maria Evangelina Cabral Machado, educadora conhecida como Dona Nina, idealizadora do Asilo São José, na cidade sergipana de Capela.

Como as lágrimas abafam a inspiração e tentando aplacar os meus índices glicêmicos, num desafio que nunca venci, mesmo agora tomando enormes quantidades de pílulas em prévias de insulina, ouso republicar um texto meu, datado dias após a morte de Nina, acontecida no já longínquo 28 de maio de 1978, que restou em mim enquanto tristeza inesquecível.

Segue o texto:

Nina

Você foi embora muito cedo, com 32 anos apenas.

Jamais pensei que você seria tão efêmera, tão frágil e tão fugaz.

Você era forte, disposta, corajosa e eu não ficava atrás.

Em casa, e só em casa, chamavam-nos ‘a Leoa’ e ‘o Tigre’. Um equívoco, uma coisa da qual nunca gostáramos, por depreciativa e chata, e porque a finalidade era ‘desleonizar’ a leoa e ‘destigrar’ o tigre.

Uma coisa equivocada, sobretudo, vendo o que foi sua passagem pela vida…

Mas, deixa pra lá! Ficou a lembrança e a missão de fazer diferente com a prole felina que chegasse.

Você chegou sempre na minha frente, e assim foi na vida e na morte.

Você viu a luz primeiro, quer quando abriu os olhos em 11 de março de 1946, e eu ainda não existia, quer quando os fechei (e fui eu que os fechei!) em 28 de maio de 1978, dia em que você partiu em busca do criador, nossa causa e objetivo.

Nossa diferença de idade, pouco mais que catorze meses, nos tornou alunos da mesma aula com Tia Anita (Professora Helena Barreto), no Educandário Brasília, pesquisadores da mesma experiência de vida e, sobretudo, forjadas foram as nossas personalidades no mesmo fogo e no mesmo cadinho.

Tínhamos as nossas diferenças, tão naturais à concepção psicossomática.

Era até compreensível que existissem entre nós as divergências infantis e até adolescentes, afinal malhados na mesma bigorna, nunca abdicaríamos das nossas identidades, que se eriçavam mais das vezes, afinal todo jovem é sedento de afirmação. E é um equívoco tolhê-la, afinal alguém já disse para os jovens, aquilo que bem pode ser aplicado a todo filho; “aos jovens só podemos dar raízes e asas!”

Passada esta fase juvenil em que andamos paralelamente os mesmos passos, veio-nos o amadurecimento e com ele a responsabilidade de viver. E assim passamos a trilhar caminhos diferentes, porque você constituiu família logo, e eu pouco depois, em busca da realização integral, só possível com a preservação da espécie.

E Deus lhe deu o marido amado e três filhos amoráveis. Mas, o destino não lhe reservou uma alegria plena, afinal o seu primogênito seria um quase vegetal sorridente.

E aí você virou realmente uma leoa.

Não uma leoa raivosa e ameaçadora, mas a leoa que lutou até quando lhe faltaram as forças.

E assim estou a vê-la incansável, viajando com o esposo na busca da solução científica que curasse a sua criança. Vejo a revolta dos dois com os diagnósticos pessimistas e irreversíveis, se repetindo sucessivamente.

Estou a vê-la se exaurir em repetidos exercícios inúteis, tudo fazendo pela cura da criança, que era linda, sem manchas, tinha olhos de um puríssimo azul, mas que na vida só aprenderia a sorrir. Um sorriso de ternura que encantava a todos que o viam. Um santinho, por que não?

Mas, se as mães existem também para santificar os filhos, as mães padecem o seu calvário quando sua criança não enseja a plena esperança de vida.

E assim carregando a sua cruz, sem entrega-la a um Simão Cireneu qualquer, as forças de sua vida começaram a faltar. Era o seu coração que enfraquecia, que não resistia.

Estou a lembrar um seu diálogo (o último e derradeiro) me dizendo que Deus a curaria, pois não deixaria que seu pequeno Manoel Francisco ficasse para ser cuidado sem mãe. Seria uma provação muito grande, e Deus não o permitiria que fosse missão de outrem.

Mas Deus o quis diferente. E o remédio que lhe seria de sua cura foi-lhe fulminante e letal. E você sumiu da minha frente, brusca e terrivelmente, numa convulsão tão violenta, que parecia tudo estar se avessando no seu corpo por inteiro.

E assim você passou.

Partiu sem conseguir o milagre da recuperação, que pedia para aquele risonho e indefeso ser, que por certo está a sentir a sua partida.

Agora, finda sua passagem entre nós, contemplando a sua vida, vejo-a a como um exemplo de provação.

Se a vida é mais tristeza que alegria e felicidade, seus 32 anos de vida foram incontestes exemplos desta assertiva.

Porém, como aqueles que Deus mais ama são os que mais cedo chama para o seu convívio, poupando-os da tarefa terrena de continuar ou destruir a criação, creio que você está agora no convívio de nossos antepassados e amigos, intercedendo junto ao Pai por todos nós aqui na terra.

Assim, você agora é nossa Santa!

É desse modo que a vejo nesses dias de tristeza, quando ainda é tão recente o seu afastamento.

Interceda, ó minha irmã, por todos aqueles que ainda respiram  e possuem a alegria de ser e ter, para que esse mundo seja melhor do que foi o seu. Por seus filhos pequeninos, sua razão de rir e sonhar. E em particular peço por nós, sua família, nós que sentimos a falta da sua voz, de seus verdes olhos, de seu sorriso e de sua presença, mas que esperamos, após cumprir a tarefa que nos foi destinada, encontrá-la para sempre no convívio eterno.

Deixando agora o texto escrito após o passamento de minha irmã, a Bacharela Nina Maria Cabral Machado, em 28 de maio de 1978, aos 32 anos de idade, volto ao encontro mantido com o seu colega de Faculdade Direito, Luiz Santana, para dizer algo mais sobre minha irmã e sua colega.

Nina, como as meninas da minha família, após o Curso Primário no Educandário Brasília das Professoras Helena Barreto e Alaíde Oliveira, cursou o Ginásio e o Científico no Colégio Nossa Senhora de Lourdes das Irmãs Sacramentinas.

Prestou Concurso Vestibular da Faculdade de Direito de Sergipe, graduando-se em 8 de Dezembro de 1969, no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

Nina gostava de idiomas. Naquele tempo a gente estudava Latim, Francês e Inglês. Ela também estudou piano com a Professora Maria Guimarães Gesteira, chegando a se apresentar em público nos Concertos infantis da época.

Enquanto estudante de Direito, Nina exerceu a função de Promotora Substituta de Justiça na comarca de Capela, tendo atuado muito jovem no tribunal do júri daquela cidade, fazendo-o com desenvoltura e competência sem alardes.

Logo após a formatura, Nina se casou com o Engenheiro Agrônomo Jorge do Prado Sobral com quem teve três filhos, Manoel Francisco, o filhinho excepcional que lhe sobreviveu por sete anos e morreu aos 14 anos, o Médico Jorge Junior que lhe daria dois netos, Francisco Manoel e Nina, e o Engenheiro Agrônomo Paulo Henrique, pai de dois garotos, Paulo e Jorge.

Nina redigia muito bem, tinha boa oratória, e com certeza teria bom futuro na carreira jurídica, não fosse uma opção assumida, viver para o lar, que a afastou da profissão, sobretudo após o nascimento do filho primogênito doentio a lhe reivindicar toda atenção.

Dos colegas de Faculdade, estou a lembrar de alguns: Luiz Santana, Elvira Dina, Isabel Amaral, Ana Lúcia Campos, Anderson Nascimento, Cândida, Carlos Alberto Sobral, Mario Jorge Vieira, Wellington Mangueira, Artêmio Barreto, e outros cuja lembrança escapa.

No contexto de memória, conta-se que perguntado ao Abade Sieyès (1748-1836), único revolucionário a atingir a velhice, mesmo após ter escrito o sedicioso texto “O que é o Terceiro Estado?”, por ocasião dos “Estados Gerais”, passando depois pelo “Julgamento do Jogo da Pela”, posar de “Regicida” cortando a cabeça de Luís XVI, o Capeto, conseguindo escapar do “Terror” e de sua revanche em “Termidor”, virar Cônsul com Napoleão e Roger Ducos, vingar ministro do Império até cair em desgraça em 1815 com Waterllo e a restauração da monarquia, conservando o cocar e a cabeça, sendo único revolucionário a morrer de velho, o Ex-Abade respondeu sucinto: – “O que eu fiz?;  Vivi!”

Em tempos menos tormentosos, a mesma pergunta bem poderia ser feita agora aos colegas de Nina que jubilosos festejam a vida e os cinquenta anos de profissão vitoriosa.

Que Deus os cubra de bênçãos até para lhes dizer que Nina não viveu para poder abraçá-los como bem gostaria.

Deus quis que nós, vocês e eu, vivêssemos. Ela não viveu!

Texto e imagem reproduzidos do site:  infonet.com.br

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