quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Imbuaça, O nome do artista e o artista do nome


De publicação do Facebook/Luiz Eduardo Oliva, em 15/11/2017.

Imbuaça, O nome do artista e o artista do nome. (*)
Por Luiz Eduardo Oliva (**)

Aracaju era apenas uma cidade com pouco mais de cem anos, ruas ainda enlameadas e o prefeito Godofredo Diniz aqui ou acolá inaugurando calçamentos de paralelepípedos. A população não passava dos 170 mil habitantes onde quase todo mundo se conhecia. Tudo era perto, mas tudo parecia longe. Nas cidades pequenas as maiores distâncias parecem ser maiores que nas cidades grandes. Ir até o bairro Santo Antônio, nem pensar. Os moradores das cercanias da Rua de Riachuelo, Santa Luzia, Lagarto, Arauá e Itabaiana tinham seus limites estabelecidos ao leste pelo banho do Rio Sergipe ali na “Rollemberg” acompanhados de Zé Peixe e de Dona Filomena; ao sul pelas cercanias da Igreja São José, arrodeada de mangues com o “Bariri” como anexo, pegando caranguejo em armadilha improvisada de lata de óleo de soja marca “salada”; ao oeste esbarrava-se nas areias brancas do Oratório de Bebé e ao norte, depois da Catedral já era longe.

A cidade, naturalmente era dividida em zonas. Mas zona era a denominação que a turma do futebol de pelada dava para digladiarem-se os mais ou menos “índios” como eram chamados os mais arruaceiros onde nas pelejas o pau comia. Quem nasceu no bairro Santo Antônio, parecia lá se estabelecer para sempre. Os colégios eram poucos. “Tobias Barreto” rivalizava com o “Atheneu Sergipense” e tinham como contra ponto a “Escola Normal” só de mulheres, as normalistas. O “Jackson de Figueiredo” com sua farda cor de cáqui tinha abrigado entre seus alunos o consagrado Joao Gilberto, o papa da Bossa Nova e também tinha o “Dom José Tomaz” pelas cercanias. O “Salesiano” e o “Arquidiocesano” eram os colégios religiosos assim como o “Nossa Senhora de Lourdes” e o “Patrocínio São José” sexistas, uns só para homens e outros para mulheres. Freiras e Padres monopolizavam parte do ensino. O “Tiradentes” surgiu depois assim como o G.A. (Ginásio de Aplicação) onde as meninas da nossa vã sociedade eram cognominadas de uma expressão escatológica para designar que eram “metidas”. Tudo isso fazia de Aracaju uma cidade bucólica, praiana, interiorana, embora fosse capital.

Mas se diz disso tudo nessa introdução para falar de um personagem: Manuel Imbuaça. Quem sabe de quem se trata? Certamente, se a pergunta fosse em torno do grupo de teatro Imbuaça, que fez esse mês quarenta anos de atuação, praticamente todo aracajuano sabe do quem se está falando. Mas poucos conhecem a figura do artista que deu ao “Imbuaça” o nome. Era morador da Rua Santa Luzia, numa extensão que ia da Rua Riachuelo à Praça Tobias Barreto. Ali se constituiu em um dos mais interessantes “guetos” daquela Aracaju com pouco mais de cem anos. Naquele trecho e nas suas cercanias, residiam ou viviam esse escrevinhador, Guda, Bolívar, Chumbinho, Zé Aélio, Geraldão, Vaca Braba, Seu Pedrinho, Hunaldinho, Bebeta, Bosco Scafts, Zé de Filomena, Jeze, Dona Lucinda, Robertão, Carlinhos, Sêo Vavá da Safira, Alcides Melo, Mário Jorge, Agamenon, Pipiri, e, naturalmente, Mane Imbuaça.

O nome verdadeiro era Manoel Silva Alagoano, um tipo que vivia com uma tropa de jegues, fazendo “carrego” em areia lavada para fazer celão, uma espécie de barro que era utilizado em construções. Mané Imbuaça, como era conhecido, fazia biscates. Durante o dia saia logo cedo com a sua troupe de burricos. No final da tarde, todos os dias a cena se repetia: voltava bêbado, conduzindo trôpegamente seus fiéis jericos. O entardecer naquele pedaço de rua era sempre uma festa. Alcides Mello esse belíssimo compositor da música sergipana que hoje vive em Uberlândia, Minas Gerais é ainda quem traz na memória a mais completa tradução daquela (sua) gente. E daqueles momentos. Pipiri, um artista popular era a mais significativa expressão do “marginal” quase Madame Satã. Artista popular, ganhava trocados nas escolas imitando personagens da política, trens, animais. Conta-se que certa vez, ao final de uma apresentação no Colégio Patrocínio São José, como uma das Irmãs ao pagar o cachê dissera que parte do arrecadado iria para as obras de caridade, Pipiri sentiu-se lesado. Não perdeu tempo. Virou-se para o auditório e disse que ia imitar uma freira...bufando. Se bem que usou a outra palavra mesmo.

Mas o personagem é Mane Imbuaça. Nos finais de semana pegava um pandeiro e saia para cantar emboladas e acrescentar parcos vinténs ao pouco que lhe rendia a sua tropa de jegues. Era, no dizer de Alcides, improvisador dos melhores. Cantava e alegrava. Tinha um humor permanente, espirituoso, para tudo uma saída divertida. Certa ocasião Alcides levou Mane Imbuaça a um bar que era ao ar livre, o Mine Golfe, onde hoje está situada a sede da OAB. Era o ponit da época. Os jovens, nas mesas, aos sôfregos beijos, chamaram a sua atenção. Bêbado, Mané Imbuaça virou-se para Alcides e perguntou: “Ô Alcide, isso aqui é um cabaré destampado?”

Cabaré, na verdade, era a principal opção para a Aracaju boêmia entre os anos 50 e 70. Chante Clair, Beco dos Cocos, Mira Mar, Bambu... a maioria num lugar denominado Vaticano. Mas isto já é outra história. Um dia mataram Mane Imbuaça a pauladas. Lá se foi o artista, ficou só o nome, perpetuado no grupo que se iniciou como teatro de rua, num Festival de Arte de São Cristóvão, festival que em boa iniciativa do atual prefeito da velha Capital, Marcos Santana, será retomado neste mês de dezembro.

Hoje o nome Mané Imbuaça não diz mais nada do artista popular, miserável, bêbado, que morreu de forma trágica. Foi o seu nome que o hoje famoso grupo de teatro tomou emprestado quando se iniciou pela arte de rua (inicialmente o Imbuaça fazia o chamado “teatro de rua”). Nome de um artista do meio do povo, cuja história caberia muito bem como tema de uma das peças que fazem do Grupo Imbuaça, ao lado do teatro de Jorge Lins a melhor tradição da arte cênica sergipana. Mas o Mané Imbuaça sumiu como fumaça. Entrou por uma perna de pinto, saiu por uma perna de pato... Senhor Rei mandou dizer que agora, conte mais quatro. Histórias que a historiografia não conta. De uma Aracaju que o tempo deixou para trás.

(**) Luiz Eduardo Oliva, advogado, poeta e professor. Ex-secretário de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania.

(**) Artigo publicado no Jornal da Cidade edição de fim de semana (11 a 13 de novembro de 2017).

Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Luiz Eduardo Oliva.

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