domingo, 9 de julho de 2023

Três anos sem Amaral Cavalcante: a vida lhe quis bem. E nós também!

Legenda da foto: Amaral Cavalcante: poeta, jornalista e cronista de um tempo

Publicação compartilhada do site JLPOLÍTICA, de 6 de Julho de 2023

Três anos sem Amaral Cavalcante: a vida lhe quis bem. E nós também!
Por Roseneide Santana*

Nesta sexta, 7 de julho, serão três anos sem o poeta, jornalista e cronista Amaral Cavalcante. No próximo dia 11 de julho, ele faria 77 anos. Foram apenas 8 meses entre a publicação do primeiro livro A Vida me Quer Bem e a sua partida.

Numa entrevista concedida à Segrase, ele comentou: “Estou feliz porque as pessoas da minha geração estão com meus escritos em casa para lembrar de mim e do nosso tempo”.

Recuperando aqui o delicioso texto desta semana do jornalista Antonio Passos, colega articulista também aqui do Portal JLPolítica & Negócio, eu pergunto: como esquecer um Titã?

Ainda mais um que compôs o quarteto fantástico da agitação cultural e do mundo das artes neste Estado, junto com a Ilma Fontes, Lu Spinelli e Joubert Moraes.

A única queixa que fiz em relação ao precioso livro do Amaral foi o fato de as orelhas terem saído com as letras muito miúdas e brancas, o que poderia dificultar o interesse pela leitura. Ei-las, então.

“Há pelo menos 30 anos que acompanho a produção escrita deste Estado e, obviamente, os textos de Amaral Cavalcante estiveram presentes nessa minha jornada de leitora: jornais, revistas, coquetéis literários, antologias e, mais recentemente, as postagens. Recebi dele um pen drive com quase 400 textos salvos de muitos emails, que trocou com leitores amigos, ou da rede social em que costumou postar nos últimos anos.

- Selecione aí umas 80 crônicas pro meu livro, ele disse. Olhei para o senhor de cabeça branca, mas vi o garoto da Folha da Praia, de rabo de cavalo, espírito realizador e inquieto, tentando me mostrar que sabia exatamente o que queria, mas duvidava de que alguém pudesse dar conta do seu intento. Muitas crônicas reescritas e ele não tinha vontade nem paciência de reler tudo. Quando tentou, gostou de algumas versões e não sabia qual escolher. Eu me lembrei do Gabriel García Márquez contando sua experiência de escrever um livro de contos, que durou 18 anos. Começou com 64 temas e, cada vez que lia, jogava fora alguns, até restarem 18, dos quais ele publicou 12: Doze contos peregrinos. Saber qual a melhor versão? diz Gabo: É um segredo do ofício que não obedece às leis da inteligência, mas à magia dos instintos, como a cozinheira que sabe quando a sopa está no ponto.

Entendi que precisava dar uma resposta rápida de sistematização e de compreensão do trabalho especial que me fora encomendado. Comecei, então, minha intromissão. A crônica “A Cascatinha”, por exemplo, tinha três versões. Em uma havia um episódio com o saudoso colunista Barrinhos; em outra, uma peripécia do Joubert Moraes. Já em “A morte da agenda velha”, reescrita quatro vezes, havia belas metáforas, detalhes que estavam em versões diferentes, mas não modificariam a essência da crônica se fossem reunidos em um só lugar. Primeira solução para o livro: fusão das versões.

Depois, a leitura foi apontando quatro partes mais ou menos definidas: memórias do menino, homenagens a figuras do seu convívio, causos e bares da cidade. Extraí das próprias crônicas títulos ou expressões para nomear essas partes: 1. No mundo doce de açúcares imemoriais; 2. A vida me quer bem; 3. Guardiã de inúteis segredos; e 4. De bar em bar.

À medida que  lia, avisei ao escritor: impossível somente 80 ou 100. Ele liberou até 150. Foi uma experiência sem igual. Parafraseando o Jorge Luis Borges, sinto orgulho do que li. Ao mesmo tempo sei, como leitora contumaz e ávida interessada na vida de escritores, que estive diante de um escritor. Amaral Cavalcante escolheu a crônica e escreveu sobre suas próprias experiências. Pode parecer arrogante se dizer um escritor por contar histórias da própria vida: o dilema para qualquer cronista.

Foi salpicando suas histórias aqui e acolá, mas relutou em ter sua capa/contracapa/orelha/prefácio. Graças ao bom Deus, mudou de ideia. Volto ao Gabo, após os 18 anos de labuta até publicar seus contos: “Aqui estão, prontos para ser levados à mesa depois de tanto andar de déu em déu lutando para sobreviver às perversidades da incerteza”.

De modo que, quando o Pirão de capão deixar de ser comida para ser poesia; quando “restar no quebra-queixo [de Joana Doceira] o gosto primordial da maravilha: o sabor das goiabas amassadas, um gosto de chão arrematado das frutas do quintal, maduras de preguiça e alumbramento”; quando o “herói da tarde” com sua “espada de pau” for acionado para destruir uma perigosa casa de marimbondos... sorria: você está sendo dominado pelas deliciosas crônicas de Amaral Cavalcante”.

P.S. No dia de hoje, em que uma tragédia tirou a vida do grandioso Zé Celso, trarei também o fragmento da crônica Augusto Franco, que infelizmente não entrou no livro, na qual Amaral deixou registrada a passagem estrondosa do renomado dramaturgo por Sergipe, em 1979.

“Ocorreu que o amaldiçoado Zé Celso Martinez, ícone da resistência cultural naqueles anos de chumbo, criador do Teatro Opinião e abertamente defensor da liberdade plena às expressões artísticas, estava excursionando pelo Brasil com um recital dito “orgástico e antropofágico”, bem ao seu estilo. Luiz Eduardo Costa, atento aos benefícios que essa pregação libertária traria aos artistas locais, consentiu em patrocinar, pela Subsecretaria, duas apresentações no Teatro Atheneu. O teatro encheu. No palco, tudo o que feria os brios dos milicos de plantão e que a censura vigente proibia, sob pena de cadeia, foi apresentado. Achincalharam os símbolos nacionais, jogaram uma melancia espatifada na cara dos expectadores provocando a imediata indignação da tradicional família sergipana, sem contar com os nus artísticos, tão surpreendentes quanto escandalosos. No outro dia, a caretice da cidade acordou em polvorosa! Fora! Fomos ultrajados! Não os queremos mais! Como é que uma repartição do governo patrocina este tipo de coisa? Nós, os funcionários da SUCA, começamos a arrumar as gavetas, aguardando a iminente demissão. Foi então que o governador Augusto Franco, convocando Luiz Eduardo Costa ao seu gabinete, deu-lhe as ordens: − Os meninos do teatro ficam e o Atheneu é deles, até quando eles quiserem. Sergipe é governado pela democracia. Vocês avaliem a grandiosidade do gesto!”.

Antônio Amaral Cavalcante - 11.07.1946 - 07.07.2020 - José Celso Martinez Corrêa - 30.03.1937 – 06.07.2023.

* É mestra em Letras e técnica em Educação da UFS. 

Texto e imagem reproduzidos do site: jlpolitica com br/articulista

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