quarta-feira, 22 de maio de 2019

“Hunald Alencar não está mais aqui”. Mentira: está!

Hunald Fontes de Alencar: uma grande figura!

Publicado originalmente no site JLPOLÍTICA, em 21 de maio de 2019 

“Hunald Alencar não está mais aqui”. Mentira: está!

Por Jozailto Lima

Hoje é um dia triste e alegre para a literatura brasileira. Neste 21 de maio de 2019, nosso Chico Buarque de Holanda foi distinguido com o Prêmio Camões de 2019, um quase Nobel de Literatura para um país sem Nobel de Literatura. Chico, uma das melhores pérolas da cultura brasileira - seja na música ou na literatura - merece isso e mais. Hoje é - ou seria - um dia triste por nos remeter à morte de Hunald Fontes de Alencar em 2016. Para lembrá-lo, público aqui neste portal de política um texto de minha autoria e de outro sentimento. O que vai a seguir foi postada em minha página no Facebook no 21 de maio daquele 2016.

Eu que tanto fujo da tristeza, dou-me hoje ao exercício da tristura. E dou-me por um cessamento: de repente, “a barba e as unhas” de Hunald Fontes de Alencar pararam de crescer.

Um dos nossos maiores poetas é hoje um homem a menos nesta feira-doida que é a vida. O coração que tanto lhe impulsionou à criação e lhe deu cordas pelos caminhos crespos da generosidade, resolveu dormir pra sempre na madrugada deste sábado.

Parodiando o bom e velho W. H. Auden, no poema à morte do poeta irlandês William Yeats, eu também digo, nesta hora fria, “Terra, acolhe um hóspede famoso: / Hunald de Alencar, e dá lhe repouso. / Fique a taça de Sergipe vazia / Do que continha de poesia”.

Fisicamente, Hunald de Alencar será menos um nas nossas farras presenciais a partir de agora. Tenho pena da dor que os cigarros sentirão com sua partida. Na noite de quarta-feira, dia 18, na companhia do meu filho Murilo Augusto Varjão Lima, estive com ele.

Era a estreia da peça/monólogo “Billie Holliday, a Canção”, de autoria dele, com a grande Tânia Maria e dirigida por Raimundo Venâncio. E lá estava ele no Teatro Lourival Baptista, como de sempre todo feliz e contente – eu e Murilo saímos dizendo que ele estava bem para idade, que soubemos ali numa breve consulta tratar-se de 73 anos.

O teatro era a sua outra fronteira de resistência. Uma fronteira quase lúdica, na qual se dava liricamente aos temas e aos personagens mais doidos - Billie Holliday, a lamber o assoalho da alma humana, era uma delas. E onde ele batia continência eterna e indesmontável ao seu sonho comunista que o mundo se encarregou de detonar nas últimas duas ou três décadas.

Entrei, falei com ele, conversamos sobre literatura, perguntou sobre a data de lançamento do meu novo livro “Ainda os lobos” e no final sentou-se do lado de fora, quase no batente, onde recebia informalmente as pessoas naquele bom bate-papo que sempre manejava sem empunhar o aço das razões pessoais. Hunald sabia ouvir.

Pelas vertentes da educação - bom professor de Língua Portuguesa –, da poesia, do teatro e da camaradagem pessoal, sempre tive uma saudável relação com Hunald de Alencar. Com ele e mais Maria Lúcia Dal Farra fomos jurados de um dos concursos Banese de Poesia, onde quase nos matamos lendo dois milhões de toneladas de versalhadas.

Em 2011/2012, Hunald me foi conselheiro quando estava elaborando “Viagem na Argila”, meu quarto livro. Chamar-se-ia “Baladas roucas”, mas, da análise dos poemas, ele me apareceu com a sugestão da troca de nome. Consenti. E ele me brindou com cinco parágrafos para uma das orelhas.

Hunald de Alencar era um autor com “a” maiúsculo. Era e o é. No teatro e na poesia, sua voz sempre disse com altivez a que vinha. E vinha em lufadas largas, em voos altos. Puros e precisos. Para mim, o poema “Maria Silva”, em “Ária Suspensa”, um dos seus livros, assinala com exatidão quem era esse moço:

MARIA SILVA

Das margens do rio do Sal,
Maria Silva, anfíbia
cortesã de carne e lama.

A cama patente geme
de ferrugem e goma branca.

As pernas tão arqueadas,
galopes de duras pagas.
Maria Silva pranteia
os filhos da lua cava:

pelos baixios do ventre,
pelas encostas do rio,
Maria Silva transborda
os filhos que nunca viu:

entre as alvas colinas,
mortalhados de luar,
bóiam anjos incompletos,
que o rio antoja ao mar.

Como Platão andava pendurado no eterno questionamento “O que será que Sócrates acharia disso?” em face de algo sobrenatural ou grandioso, eu aqui me pergunto: “O que será que João Cabral de Melo Neto diria deste “Maria Silva”? Sim, porque soa uma quase miniatura do seu “Cão sem pluma”, de núcleo duro, mas tão terno, tão humano e tão afirmativo.

Gosto muito de um dos aforismos do Borges, segundo o qual o sujeito pode passar a vida inteira garatujando uma obra, e apenas um par de versos lhe salvar ao fim da lida. Se uma situação dessas tivesse de ser aplicada ao nosso Hunald Fontes de Alencar, restaria dúvida de que ele teria chegando ao nirvana neste quarteto?:

pelos baixios do ventre,
pelas encostas do rio,
Maria Silva transborda
os filhos que nunca viu

Seguramente, não. Dou o direito da tristeza pela morte de Hunald, mas, alegremente, jacto-me nesta hora triste por ter partilhado com ele momentos bons nestes caminhos nada brandos da escrita.

Nunca me esquecerei da alegria moleca com que ele sempre me falava de “José em sonho”, poema do meu livro “Retrato diverso”, que tematizava meu pai do outro lado da vida. Ele dizia que se lhe coubesse selecionar os 100 melhores brasileiros poemas do novo milênio, esse entraria. O poema fala de visita no pós-morte, logicamente através do sonho:

Meu pai vence o chão e me visita
Quase todas as noites.
É tão doce a sua presença
- eu órfão neste pasto enorme

O chão que nos separa nem assusta
- não é limite pra pânico ou alarde
Apenas arde, e sei que será meu
Ao fim de qualquer tarde.

É isso aí, Hunald Fontes de Alencar, o chão que a partir de hoje será teu, em mim por enquanto “apenas arde, e sei que será meu / Ao fim de qualquer tarde”. Vá se entendendo aí com o camarada Caronte, amigo, e que a terra lhe seja leve!

Texto e imagem reproduzidos do site: jlpolitica.com.br

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