Foto reproduzida do site do Portal Infonet, postada por SERGIPE..., para ilustrar artigos.
Publicado originalmente no site do Portal da UFS, em 24 e
28/02/2012.
Ibarê Dantas e a política sergipana (I).
Por Afonso Nascimento*
Na história intelectual de Sergipe, Ibarê Dantas ocupa um
lugar de destaque: ou está entre os primeiros ou é o maior intelectual de
Sergipe. Cheguei a essa conclusão depois de excluir os sergipanos “expatriados”
e depois de analisar, quantitativa e qualitativamente, o conjunto de sua obra
materializada em livros, capítulos de livros, artigos em revistas, artigos para
a imprensa, entrevistas para jornais, palestras e conferências. A trajetória
intelectual de Ibarê tem sido marcada por uma extraordinária coerência e uma
inabalável determinação própria daquelas pessoas que sabem o que querem e que
se inventam e transformam a vocação científica num projeto de vida
profissional.
Ibarê nasceu no seio da elite social sergipana, em Riachão
do Dantas. Com efeito, por parte de seu pai e de sua mãe, ele descende de
famílias de grandes proprietários rurais. Contraditoriamente (mas como era
comum acontecer quanto mais se recua na história sergipana), seus pais não
tiveram formação universitária. Ibarê fez seus estudos pré-universitários entre
Bahia e Sergipe, passando por pelo menos duas escolas de elite, a saber, o
Colégio Maristas, em Salvador, e o Colégio Jackson de Figueiredo, em Aracaju,
nos quais quadros dirigentes e intelectuais eram formados nos dois estados.
Ingressou na Faculdade de Direito da UFS em 1965, para onde
ia importante contingente da juventude oriunda das classes proprietárias e
médias àquela época. Percebendo muito cedo a falta de interesse pelo Direito,
mudou de curso no segundo ano: foi do Direito para a História. Para aqueles
tempos (e os de hoje também?), tratava-se de uma decisão que parecia absurda,
considerando-se a geralmente baixa extração social dos alunos de História e o
desprestígio do magistério (secundário pelo menos) nessa área, única ocupação
regular então disponível para portadores de seu diploma.
Ainda nesse período universitário inicial, Ibarê exerceu a
função de bancário em Sergipe e em São Paulo, trabalhando respectivamente no
Banco do Povo (1962) e no Banco do Brasil (1964-1967). Em seguida, já graduado
em História e antes de tornar-se professor universitário, foi, por uma única
vez na sua trajetória intelectual, professor de História em escola secundária
de Aracaju (Colégio Castelo Branco). Quando se submeteu a concurso para
professor da UFS, não escolheu o Departamento de História, mas o de Ciências
Sociais.
A decisão de fazer seu mestrado em Ciência Política na
Universidade de Campinas representou uma extraordinária ruptura na trajetória
intelectual de Ibarê – mas nem tanto na sua carreira de pesquisador, pois já
saíra formado de Sergipe com a pesquisa que resultou no seu primeiro livro
sobre o tenentismo. Na UNICAMP conseguirá as bases teóricas que os estudos em
Aracaju não lhe tinham permitido, como será tratado mais adiante. Aqui também
merece ser feita a pergunta: por que não se inscreveu num curso de
pós-graduação em História? Nesse caso, ele teve essa escolha? Na sua volta a
Sergipe, foi mentor intelectual, fundador e professor do Núcleo de
Pós-Graduação em Ciências Sociais, embrião do que são hoje o mestrado e o doutorado
em Sociologia da UFS. Ali, durante muitos anos, ensinou Teoria do Estado,
Estado e Sociedade, etc.
Ibarê tem frequentado congressos e seminários de várias
associações acadêmicas. Além disso, tem exercido funções em diversos postos
administrativos, mas sempre ligados à área intelectual, como a direção do CEIS
no interior do IHGSE, a direção do NPPCS e, ponto mais alto de sua consagração
intelectual como historiador, a direção do Instituto Histórico e Geográfico de
Sergipe, o panteão dos historiadores sergipanos. Nunca foi membro de nenhum
partido político em toda a sua vida. A despeito disso, os seus contemporâneos
sabem que esteve próximo, primeiro, do PT (simpatizante?) e, mais tarde, do
PSDB (de novo simpatizante?). Para além dessas simpatias qualquer que seja o
seu grau, entendo que o seu verdadeiro “partido” foi de fazer de sua biblioteca
e de sua sala de trabalho um observatório da política sergipana em tempo
integral.
Fiz aqui a opção por não fechar os números exatos (mas
aproximados) dos trabalhos escritos por Ibarê, pois, não fazendo assim,
correr-se-ia o risco de deixar de fora obras não mencionadas nos três
currículos consultados, nas bibliotecas e nos arquivos de Sergipe.
Quantitativamente falando, ele escreveu oito livros, dos quais quatro pela
Tempo Brasileiro (RJ), dois pela Vozes (RJ),um pela UFS (SE) e pela
Criação(SE). Na década de 1970, escreveu um, na década de 1980 três, na década
de 1990 um, na primeira década do século três até agora. Foram dois, portanto,
os seus períodos mais produtivos, correspondentes a sua volta de São Paulo e a
sua aposentadoria funcional em 1994. Entre o primeiro livro (1974) e (até
agora) último (2010), passaram-se trinta e cinco anos.
A produção bibliográfica de Ibarê quase nunca foi teórica.
Com efeito, à exceção de alguns artigos, dedicou-se a testar conceitos na
prática da pesquisa empírica. Além disso, sempre se debruçou sobre a história
republicana de Sergipe – afora a biografia política do Leandro Maciel (pai),
centrada no século XIX. Sempre tratando da política sergipana, a temática de
Ibarê foi a seguinte: a) tratou de temas militares em três livros, b)dedicou
atenção a partidos e eleições em três; c) abordou o coronelismo em um; d) fez
uma biografia política; e) e escreveu uma síntese ( economia, política e
cultura) da história de Sergipe em um.
Ibarê trabalhou com longos e curtos períodos históricos.
Esses são os casos de Partidos Políticos em Sergipe, 75 anos; História de
Sergipe, 111 anos; Leandro Maciel, oitenta e quatro anos; Eleições em Sergipe,
quinze anos; O Tenentismo em Sergipe, seis anos; Revolução de 1930, um ano; A
Tutela Militar, vinte anos; e Coronelismo, sem periodização explícita. Em
síntese, foram quatro trabalhos com longa e curta duração, respectivamente.
Escreveu Ibarê cerca de dezesseis artigos acadêmicos. O primeiro (não
publicado) tratou da história política de Sergipe de 1889 até 1930 e o último,
até agora, sobre o sociólogo e idealizador do Instituto Histórico e Geográfico
de Sergipe Florentino Menezes. No caso dos artigos acadêmicos, foram explorados
temas indo além da realidade sergipana. Os seus artigos para jornais foram, até
aqui, em torno de dezessete. Isso mostra uma razoável participação de Ibarê no
debate público sergipano sem tornar-se com isso, todavia, um intelectual
midiático.
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Ibarê Dantas e a política sergipana (II).
Por Afonso Nascimento*
Ibarê Dantas é o fundador da Historiografia Política em
Sergipe. Antes dele, alguns autores, sem formação de historiador, escreveram
sobre a história política sergipana. Depois desse grupo inicial não científico,
novo grupo, com e sem formação de historiador também tratou da política
sergipana numa perspectiva histórica. Nesse grupo estão Maria Thétis Nunes,
Ariosvaldo Figueiredo, Terezinha Oliva e outros. Mas é com Ibarê, discípulo,
colega e contemporâneo dos nomes mencionados que a Historiografia Política é
realmente construída, ganhando status de campo científico em Sergipe.
Munido da cultura historiográfica aprendida na UFS que
sozinho aprofundou durante a sua graduação e ao longo de sua trajetória
profissional, Ibarê se aproximou da Escola dos Anais que transformou a História
num espaço científico através do emprego de métodos e de conceitos usados pelas
Ciências Sociais, contra a velha tradição de narrar a história mediante a
referência dos grandes homens e dos grandes eventos. A partir dessa bagagem
intelectual, tornou-se um assíduo frequentador dos arquivos sergipanos e de
outros estados, estabelecendo com eles uma familiaridade que alimentará o
conjunto das pesquisas que desenvolverá ao longo de sua trajetória.
É justamente esse papel de fundador da Historiografia Sergipana
que permitirá a Ibarê a contribuir para a formação política dos sergipanos.
Explico-me melhor. Em toda a parte, no mundo moderno, os historiadores, ao
recuperar e registrar a memória dos povos a que pertenciam, contribuíram para a
formação das identidades nacionais, regionais, estaduais e locais. No caso de
Sergipe, vale destacar, em primeiro lugar, o papel exercido por Felisbelo
Freire ao escrever a primeira obra de história de Sergipe. Depois dele, outros
autores ligados ou não ao IHGSE, também contribuíram para esse papel. Mas
nenhum outro o fez com tamanha especialização e exclusividade como Ibarê.
Com efeito, toda a sua produção bibliográfica está centrada
na história política sergipana relativa a todo o século XX. Dada a sua
especialização, exclusividade e (acrescento eu aqui) extensão temáticas, Ibarê
ensinou aos sergipanos quem são eles politicamente. As opiniões e as reflexões
que têm os intelectuais, os políticos dados à leitura e demais setores
interessados sobre a identidade sergipana passam pelas pesquisas e pelas
interpretações de Ibarê. Não há como escapar. Além disso, como mencionei antes,
contribuiu para estruturar a História como campo científico ao ajudar a
constituir, também, a identidade de historiador em Sergipe.
Ibarê é também o fundador da Ciência Política sergipana.
Antes dele, o nome pioneiro é sem dúvida o de Bonifácio Fortes, como ele
próprio o observou em artigo. Bonifácio Fortes é um jurista polígrafo que
escreveu, apoiado em fontes empíricas, trabalhos sobre eleições, partidos e
elites políticas em Sergipe. Diferentemente de seu antecessor, Ibarê, com
magistério específico (na graduação e na pós-graduação) e com mestrado em
Ciência Política, foi muito além quantitativa e qualitativamente em termos de
produção bibliográfica em relação ao seu predecessor. Dessa forma, contribuiu
também para a constituição desse outro campo científico em Sergipe.
Afora o primeiro livro sobre o tenentismo, em que não parece
fazer opção teórica, em todos os demais Ibarê diz compartilhar dos conceitos de
política propostos por Gramsci, notadamente a sua teoria da hegemonia. Entendo,
entretanto, que a sua definição gramsciana virá, de verdade, a partir do
terceiro livro. O segundo tem, a meu ver, uma forte influência do marxismo
estruturalista de Althusser e de Poulantzas – os quais se dizem, aliás,
seguidores de Gramsci também. Ibarê seria, então, um cientista político
marxista da política sergipana? Embora Gramsci se inscreva na tradição
marxista, trata-se de um marxismo refinado, mais político, nada tendo a ver com
as vertentes economicistas e autoritárias derivadas de Marx, Lênin e outros. Em
relação a Ibarê, talvez seja mais adequado chamá-lo de um cientista político
gramsciano da política sergipana, enfatizando a ação das classes e de suas frações,
os seus interesses e a luta pela hegemonia política – embora, muitas vezes,
tenha-se a impressão de que a força das fontes trabalhadas ( depoimentos
pessoais, jornais, documentos oficiais etc. ) seja mais importante do que
quaisquer sutilezas teóricas . Apesar de reivindicar uma objetividade
impossível, é obrigatório notar que Ibarê é um pesquisador extremamente
rigoroso, muito cuidadoso no manuseio de suas fontes e profundamente honesto
intelectualmente.
Da leitura de seus oito livros, penso que dois pontos
recorrentes podem ser destacados. Trata-se, em primeiro lugar, de sua crítica
moderada mas firme das elites políticas sergipanas . À exceção talvez do seu
primeiro livro (em que parece buscar o máximo de isenção no que escreve), sua
obra está repleta de referências negativas às oligarquias, a sua falta de
sentimento do bem comum, as suas práticas políticas não abonáveis, etc. O outro
ponto que merece ser enfatizado é o seu papel de intelectual na construção da
democracia em Sergipe. Produto de uma geração que viveu sob duas ditaduras (a
de Vargas e a dos militares), de forma não radical ele militou contra a
ditadura militar como estudante, como professor e como pesquisador. A sua
compreensão da democracia parece ter sido derivada, primeiro, da própria obra
de Gramsci e depois de autores como Norberto Bobbio, entre outros. Da leitura
de sua obra, tem-se às vezes a impressão de que ele “torce” pelas forças
políticas democráticas ou por mudanças que possam levar à introdução da
gramática democrática na política sergipana. Esse duplo engajamento, no
primeiro caso mais contido, enquanto que no segundo mais direto, faz dele um
autor sempre atual. Ibarê Dantas é historiador e cientista político do século
passado e, à exceção de um único livro, só sobre aquele século escreveu. Tem
gozado de prestígio, de legitimidade de respeito dos seus pares acadêmicos, mas
também fora da academia.
A opção de pesquisar e de escrever sobre Sergipe fez dele,
necessariamente, um intelectual provinciano - sem sentido negativo. Caso
tivesse escrito sobre São Paulo, por exemplo, seria um autor nacional, dadas a
qualidade e a quantidade dos seus trabalhos. Em grande parte de sua obra,
buscou relativizar objetos abordados pela historiografia paulista. Também por
isso, ter Sergipe como objeto não o ajudou a tornar-se um autor nacional – a
despeito da repercussão de alguns dos seus trabalhos. Não é um intelectual
póstumo, mas sua obra ainda não foi suficientemente lida e trabalhada por seus
conterrâneos. Ele abriu muitas pistas e muitas frentes de pesquisa que só serão
trabalhadas pelas novas gerações de historiadores e de cientistas sociais. Isso
faz de sua obra, a meu ver, uma passagem incontornável para quem queira
conhecer a política no século passado, o que o torna um autor para o século
XXI.
* Professor do Departamento de Direito da UFS.
Textos reproduzidos do site: ufs.br/conteudo
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