domingo, 12 de fevereiro de 2017

Ibarê Dantas e a política sergipana I e II

Foto reproduzida do site do Portal Infonet, postada por SERGIPE..., para ilustrar artigos.

Publicado originalmente no site do Portal da UFS, em 24 e 28/02/2012.

Ibarê Dantas e a política sergipana (I).
Por Afonso Nascimento*

Na história intelectual de Sergipe, Ibarê Dantas ocupa um lugar de destaque: ou está entre os primeiros ou é o maior intelectual de Sergipe. Cheguei a essa conclusão depois de excluir os sergipanos “expatriados” e depois de analisar, quantitativa e qualitativamente, o conjunto de sua obra materializada em livros, capítulos de livros, artigos em revistas, artigos para a imprensa, entrevistas para jornais, palestras e conferências. A trajetória intelectual de Ibarê tem sido marcada por uma extraordinária coerência e uma inabalável determinação própria daquelas pessoas que sabem o que querem e que se inventam e transformam a vocação científica num projeto de vida profissional.

Ibarê nasceu no seio da elite social sergipana, em Riachão do Dantas. Com efeito, por parte de seu pai e de sua mãe, ele descende de famílias de grandes proprietários rurais. Contraditoriamente (mas como era comum acontecer quanto mais se recua na história sergipana), seus pais não tiveram formação universitária. Ibarê fez seus estudos pré-universitários entre Bahia e Sergipe, passando por pelo menos duas escolas de elite, a saber, o Colégio Maristas, em Salvador, e o Colégio Jackson de Figueiredo, em Aracaju, nos quais quadros dirigentes e intelectuais eram formados nos dois estados.

Ingressou na Faculdade de Direito da UFS em 1965, para onde ia importante contingente da juventude oriunda das classes proprietárias e médias àquela época. Percebendo muito cedo a falta de interesse pelo Direito, mudou de curso no segundo ano: foi do Direito para a História. Para aqueles tempos (e os de hoje também?), tratava-se de uma decisão que parecia absurda, considerando-se a geralmente baixa extração social dos alunos de História e o desprestígio do magistério (secundário pelo menos) nessa área, única ocupação regular então disponível para portadores de seu diploma.

Ainda nesse período universitário inicial, Ibarê exerceu a função de bancário em Sergipe e em São Paulo, trabalhando respectivamente no Banco do Povo (1962) e no Banco do Brasil (1964-1967). Em seguida, já graduado em História e antes de tornar-se professor universitário, foi, por uma única vez na sua trajetória intelectual, professor de História em escola secundária de Aracaju (Colégio Castelo Branco). Quando se submeteu a concurso para professor da UFS, não escolheu o Departamento de História, mas o de Ciências Sociais.

A decisão de fazer seu mestrado em Ciência Política na Universidade de Campinas representou uma extraordinária ruptura na trajetória intelectual de Ibarê – mas nem tanto na sua carreira de pesquisador, pois já saíra formado de Sergipe com a pesquisa que resultou no seu primeiro livro sobre o tenentismo. Na UNICAMP conseguirá as bases teóricas que os estudos em Aracaju não lhe tinham permitido, como será tratado mais adiante. Aqui também merece ser feita a pergunta: por que não se inscreveu num curso de pós-graduação em História? Nesse caso, ele teve essa escolha? Na sua volta a Sergipe, foi mentor intelectual, fundador e professor do Núcleo de Pós-Graduação em Ciências Sociais, embrião do que são hoje o mestrado e o doutorado em Sociologia da UFS. Ali, durante muitos anos, ensinou Teoria do Estado, Estado e Sociedade, etc.

Ibarê tem frequentado congressos e seminários de várias associações acadêmicas. Além disso, tem exercido funções em diversos postos administrativos, mas sempre ligados à área intelectual, como a direção do CEIS no interior do IHGSE, a direção do NPPCS e, ponto mais alto de sua consagração intelectual como historiador, a direção do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, o panteão dos historiadores sergipanos. Nunca foi membro de nenhum partido político em toda a sua vida. A despeito disso, os seus contemporâneos sabem que esteve próximo, primeiro, do PT (simpatizante?) e, mais tarde, do PSDB (de novo simpatizante?). Para além dessas simpatias qualquer que seja o seu grau, entendo que o seu verdadeiro “partido” foi de fazer de sua biblioteca e de sua sala de trabalho um observatório da política sergipana em tempo integral.

Fiz aqui a opção por não fechar os números exatos (mas aproximados) dos trabalhos escritos por Ibarê, pois, não fazendo assim, correr-se-ia o risco de deixar de fora obras não mencionadas nos três currículos consultados, nas bibliotecas e nos arquivos de Sergipe. Quantitativamente falando, ele escreveu oito livros, dos quais quatro pela Tempo Brasileiro (RJ), dois pela Vozes (RJ),um pela UFS (SE) e pela Criação(SE). Na década de 1970, escreveu um, na década de 1980 três, na década de 1990 um, na primeira década do século três até agora. Foram dois, portanto, os seus períodos mais produtivos, correspondentes a sua volta de São Paulo e a sua aposentadoria funcional em 1994. Entre o primeiro livro (1974) e (até agora) último (2010), passaram-se trinta e cinco anos.

A produção bibliográfica de Ibarê quase nunca foi teórica. Com efeito, à exceção de alguns artigos, dedicou-se a testar conceitos na prática da pesquisa empírica. Além disso, sempre se debruçou sobre a história republicana de Sergipe – afora a biografia política do Leandro Maciel (pai), centrada no século XIX. Sempre tratando da política sergipana, a temática de Ibarê foi a seguinte: a) tratou de temas militares em três livros, b)dedicou atenção a partidos e eleições em três; c) abordou o coronelismo em um; d) fez uma biografia política; e) e escreveu uma síntese ( economia, política e cultura) da história de Sergipe em um.

Ibarê trabalhou com longos e curtos períodos históricos. Esses são os casos de Partidos Políticos em Sergipe, 75 anos; História de Sergipe, 111 anos; Leandro Maciel, oitenta e quatro anos; Eleições em Sergipe, quinze anos; O Tenentismo em Sergipe, seis anos; Revolução de 1930, um ano; A Tutela Militar, vinte anos; e Coronelismo, sem periodização explícita. Em síntese, foram quatro trabalhos com longa e curta duração, respectivamente. Escreveu Ibarê cerca de dezesseis artigos acadêmicos. O primeiro (não publicado) tratou da história política de Sergipe de 1889 até 1930 e o último, até agora, sobre o sociólogo e idealizador do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe Florentino Menezes. No caso dos artigos acadêmicos, foram explorados temas indo além da realidade sergipana. Os seus artigos para jornais foram, até aqui, em torno de dezessete. Isso mostra uma razoável participação de Ibarê no debate público sergipano sem tornar-se com isso, todavia, um intelectual midiático.

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Ibarê Dantas e a política sergipana (II).
Por Afonso Nascimento*

Ibarê Dantas é o fundador da Historiografia Política em Sergipe. Antes dele, alguns autores, sem formação de historiador, escreveram sobre a história política sergipana. Depois desse grupo inicial não científico, novo grupo, com e sem formação de historiador também tratou da política sergipana numa perspectiva histórica. Nesse grupo estão Maria Thétis Nunes, Ariosvaldo Figueiredo, Terezinha Oliva e outros. Mas é com Ibarê, discípulo, colega e contemporâneo dos nomes mencionados que a Historiografia Política é realmente construída, ganhando status de campo científico em Sergipe.

Munido da cultura historiográfica aprendida na UFS que sozinho aprofundou durante a sua graduação e ao longo de sua trajetória profissional, Ibarê se aproximou da Escola dos Anais que transformou a História num espaço científico através do emprego de métodos e de conceitos usados pelas Ciências Sociais, contra a velha tradição de narrar a história mediante a referência dos grandes homens e dos grandes eventos. A partir dessa bagagem intelectual, tornou-se um assíduo frequentador dos arquivos sergipanos e de outros estados, estabelecendo com eles uma familiaridade que alimentará o conjunto das pesquisas que desenvolverá ao longo de sua trajetória.

É justamente esse papel de fundador da Historiografia Sergipana que permitirá a Ibarê a contribuir para a formação política dos sergipanos. Explico-me melhor. Em toda a parte, no mundo moderno, os historiadores, ao recuperar e registrar a memória dos povos a que pertenciam, contribuíram para a formação das identidades nacionais, regionais, estaduais e locais. No caso de Sergipe, vale destacar, em primeiro lugar, o papel exercido por Felisbelo Freire ao escrever a primeira obra de história de Sergipe. Depois dele, outros autores ligados ou não ao IHGSE, também contribuíram para esse papel. Mas nenhum outro o fez com tamanha especialização e exclusividade como Ibarê.

Com efeito, toda a sua produção bibliográfica está centrada na história política sergipana relativa a todo o século XX. Dada a sua especialização, exclusividade e (acrescento eu aqui) extensão temáticas, Ibarê ensinou aos sergipanos quem são eles politicamente. As opiniões e as reflexões que têm os intelectuais, os políticos dados à leitura e demais setores interessados sobre a identidade sergipana passam pelas pesquisas e pelas interpretações de Ibarê. Não há como escapar. Além disso, como mencionei antes, contribuiu para estruturar a História como campo científico ao ajudar a constituir, também, a identidade de historiador em Sergipe.

Ibarê é também o fundador da Ciência Política sergipana. Antes dele, o nome pioneiro é sem dúvida o de Bonifácio Fortes, como ele próprio o observou em artigo. Bonifácio Fortes é um jurista polígrafo que escreveu, apoiado em fontes empíricas, trabalhos sobre eleições, partidos e elites políticas em Sergipe. Diferentemente de seu antecessor, Ibarê, com magistério específico (na graduação e na pós-graduação) e com mestrado em Ciência Política, foi muito além quantitativa e qualitativamente em termos de produção bibliográfica em relação ao seu predecessor. Dessa forma, contribuiu também para a constituição desse outro campo científico em Sergipe.

Afora o primeiro livro sobre o tenentismo, em que não parece fazer opção teórica, em todos os demais Ibarê diz compartilhar dos conceitos de política propostos por Gramsci, notadamente a sua teoria da hegemonia. Entendo, entretanto, que a sua definição gramsciana virá, de verdade, a partir do terceiro livro. O segundo tem, a meu ver, uma forte influência do marxismo estruturalista de Althusser e de Poulantzas – os quais se dizem, aliás, seguidores de Gramsci também. Ibarê seria, então, um cientista político marxista da política sergipana? Embora Gramsci se inscreva na tradição marxista, trata-se de um marxismo refinado, mais político, nada tendo a ver com as vertentes economicistas e autoritárias derivadas de Marx, Lênin e outros. Em relação a Ibarê, talvez seja mais adequado chamá-lo de um cientista político gramsciano da política sergipana, enfatizando a ação das classes e de suas frações, os seus interesses e a luta pela hegemonia política – embora, muitas vezes, tenha-se a impressão de que a força das fontes trabalhadas ( depoimentos pessoais, jornais, documentos oficiais etc. ) seja mais importante do que quaisquer sutilezas teóricas . Apesar de reivindicar uma objetividade impossível, é obrigatório notar que Ibarê é um pesquisador extremamente rigoroso, muito cuidadoso no manuseio de suas fontes e profundamente honesto intelectualmente.

Da leitura de seus oito livros, penso que dois pontos recorrentes podem ser destacados. Trata-se, em primeiro lugar, de sua crítica moderada mas firme das elites políticas sergipanas . À exceção talvez do seu primeiro livro (em que parece buscar o máximo de isenção no que escreve), sua obra está repleta de referências negativas às oligarquias, a sua falta de sentimento do bem comum, as suas práticas políticas não abonáveis, etc. O outro ponto que merece ser enfatizado é o seu papel de intelectual na construção da democracia em Sergipe. Produto de uma geração que viveu sob duas ditaduras (a de Vargas e a dos militares), de forma não radical ele militou contra a ditadura militar como estudante, como professor e como pesquisador. A sua compreensão da democracia parece ter sido derivada, primeiro, da própria obra de Gramsci e depois de autores como Norberto Bobbio, entre outros. Da leitura de sua obra, tem-se às vezes a impressão de que ele “torce” pelas forças políticas democráticas ou por mudanças que possam levar à introdução da gramática democrática na política sergipana. Esse duplo engajamento, no primeiro caso mais contido, enquanto que no segundo mais direto, faz dele um autor sempre atual. Ibarê Dantas é historiador e cientista político do século passado e, à exceção de um único livro, só sobre aquele século escreveu. Tem gozado de prestígio, de legitimidade de respeito dos seus pares acadêmicos, mas também fora da academia.

A opção de pesquisar e de escrever sobre Sergipe fez dele, necessariamente, um intelectual provinciano - sem sentido negativo. Caso tivesse escrito sobre São Paulo, por exemplo, seria um autor nacional, dadas a qualidade e a quantidade dos seus trabalhos. Em grande parte de sua obra, buscou relativizar objetos abordados pela historiografia paulista. Também por isso, ter Sergipe como objeto não o ajudou a tornar-se um autor nacional – a despeito da repercussão de alguns dos seus trabalhos. Não é um intelectual póstumo, mas sua obra ainda não foi suficientemente lida e trabalhada por seus conterrâneos. Ele abriu muitas pistas e muitas frentes de pesquisa que só serão trabalhadas pelas novas gerações de historiadores e de cientistas sociais. Isso faz de sua obra, a meu ver, uma passagem incontornável para quem queira conhecer a política no século passado, o que o torna um autor para o século XXI.

* Professor do Departamento de Direito da UFS.

Textos reproduzidos do site: ufs.br/conteudo

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