domingo, 4 de abril de 2021

Perdemos Ilma Fontes, inteligência multifacetada...

Publicado originalmente no Perfil do Facebook de Luiz Eduardo Oliva, 4 de abril de 2021

Perdemos Ilma Fontes, inteligência multifacetada que resistiu ao ordinário 

Por Luiz Eduardo Oliva *

Ela era Moquinha. Se me perguntarem de onde vem esse carinhoso apelido eu não sei. Mas era assim que eu e uns poucos chamávamos essa mulher  extraordinária, referência da sua geração. Moquinha era Ilma Fontes.

Pode parecer lugar comum o uso de superlativos quando morre uma pessoa. Mas em Ilma talvez superlativos ainda seja pouco. De uma geração brilhante, das mais criativas, Ilma pontuou entre os anos 60/70 até os dias atuais.

Multifacetada, estudou medicina e formada foi para o campo da psiquiatria  onde certamente seria tão brilhante como em tudo que fez. Mas a compreensão dos desvãos da mente que desafiava a psiquiatra falou a ela menos que a inquietação daqueles tempos, onde a arte era aquilo que Ilma passou a chamar de resistência ao banal. E assim a arte e o jornalismo falaram mais alto. A medicina perdeu a médica e a cultura sergipana ganhou uma  grande ativista que vencendo todas as dificuldades manteve-se fiel aos seus propósitos até  que as forças da saúde retiraram a guerreira da sua santa e brilhante luta.

No final dos anos 1960 as manifestações artísticas em Sergipe, como de resto no país, viviam sob a espada nefasta da censura. A ditadura militar fazia calar vozes.

Mas as vozes da resistência não esmoreciam. Ainda que nem toda arte tivesse uma ação  manifestadamente de combate à ditadura, era uma forma de resistência, sobretudo no aspecto dos costumes enfrentando principalmente a censura para que o livre pensar não fosse somente a liberdade de pensar, mas também a forma de livremente se expressar.

"Vôos Mitos Coloridos", por exemplo, foi uma criação sergipana daquele final dos anos 1960. Na cacofonia dizia dos "vômitos coloridos" de uma geração que resistia aos padrões moralistas e precisava vomitar, por assim dizer, aquilo que representava a hipocrisia de uma sociedade limitada e conservadora. “Vôos, Mitos Coloridos” foi uma peça antenada com o tom psicodélico que vibrava no mundo, com a contracultura do Woodstock, as revoltas das  barricadas de Paris, os cânones da revolução sexual e também a afirmação libertadora da voz feminina.

Em Sergipe, uma tribo de jovens fazia aqui como alhures, ressoar a arte que resistia. Ilma Fontes foi certamente, a mais completa tradução da mulher para além do seu tempo. Daquela trupe, o poeta Mario Jorge era a principal liderança, uma liderança natural pela sua irreverência, genialidade e criatividade. Também tinha Joubert Moraes, Amaral Cavalcante, Alcides Mello, Lânia Duarte, Marcos Chulé, Mara Lopes , Caio Rubens, Nêga ( Uilma Rodrigues ), Vinicius Dantas, Djaldino Moreno, Cabo Tripa,  Clovis Barbosa , Barrinhos... Uns mais novos como  Vinicius e Caio, outros menos irreverentes como Djaldino, mas havia um propósito de dizer não às convenções e fazer em Sergipe o processo criativo que mexeu com as caducas estruturas sociais daqueles anos. Claro que tinha mais gente, mas esses nomes já formam um  núcleo representativo.

Ilma se destacava pela inteligência viva, sempre brilhante nos argumentos, detentora de uma sólida e multifacetada cultura, era poetisa, jornalista, cineasta. Fez também  televisão e teatro. Eu mesmo, de uma geração que seqüenciou a geração de Ilma, ensaiei sob o seu comando o "Já Vou" uma coletânea de textos iconoclastas de Amaral Cavalcante que Ilma adaptou para o teatro. Ensaiamos eu, Zezé, Jorge Lins , Cezar Macieira... Mas nem lembro porque não foi adiante.

No cinema Ilma realizou ““Arcanos – O Jogo”” um curta na bitola 16 mm tendo Amaral Cavalcante como ator principal, rodado no “Tales Ferraz” e pegava toda a magia do Mercado com o jogo do tarô e a carta que representa o que está oculto, o que é desconhecido. O filme ganhou projeção ao participar do circuito nacional no final dos anos 70  (passava nos principais cinemas do país antes dos filmes em cartaz) teve a direção de Ilma  juntamente com a carioca Yoya Wurch uma cineasta que se apaixonou por Aracaju e por Ilma.

Elas também realizaram "O Beijo" no início dos anos 80 onde as duas faziam amor diante da  Câmara de 8 mm sob o comando do fotógrafo Jairo Andrade. O filme foi uma porrada na  hipocrisia e protagonizou um o primeiro beijo lésbico do cinema sergipano, dizendo como na música Paula e Bebeto de Milton Nascimento e Caetano que qualquer maneira de amor vale a pena. Pode parecer bobagem nos tempos atuais mas naquela época foi emblemático. E Moquinha dizia: eu sou quem eu sou. E seus admiradores como eu, aplaudia com as mãos e  com a alma.

É também do início dos anos 80 que Ilma junto com Amaral Cavalcante, Roninho, Fernando Sávio e outros criam a Folha da Praia o marco do jornalismo alternativo de Sergipe, no embalo inclusive da Praia dos Artistas que era o ponto de encontro da juventude criativa daqueles anos. E eu também estava lá.

Ilma, todavia, rompeu com a Folha, embora continuando amiga de Amaral e fundou "O Capital", o jornal alternativo com um propósito mais cultural que a “Folha” e que tinha como pórtico o slogan "uma resistência ao ordinário". Há uns três anos Ilma me chamou para compor o júri do Concurso de Poesia do "O Capital" e me disse, em sua casa na Rua da Frente, que estava cansada. Ela, a combatente ao banal, mantinha à duras penas e com recursos próprios aquele jornal em formato tablóide distribuído em ciclos culturais em todo o Brasil. Um câncer de pele também tirava suas forças.

Por volta das 19 horas deste sábado num abril descolorido pelas mortes em profusão recebi uma ligação da amiga comum, aos prantos, Aida Campos  Campos me dizendo:  "Moquinha Morreu!" Triste liguei imediatamente para o compositor Alcides Melo que mora Uberlândia/MG um dos últimos remanescentes daquela geração brilhante. Alcides logo lembrou duas músicas que fez inspirado nela: “Bolero Parabelo” e “Informativo Cinzano” cujos versos falam de Valdomiro, paciente psiquiátrico do Adauto Botelho, que em fase de recuperação morava na casa de Ilma Fontes no início dos anos 70 na Treze de Julho: "Eu  disse assim Vardomiro/Lembrai a imagem de Deus/A saudade de Ilma Fontes/E os versos que Deus lhe deu". Sergio Ferrari lembrou que quando chegou em Aracaju em 1978, Ilma foi das primeiras pessoas que conheceu e se encantou, pela inteligência e o seu lado transgressora.

Ilma Fontes, a nossa Moquinha, não só morreu. Com ela fecha-se um ciclo da cultura artística sergipana. Não que Ilma seja a única remanescente da sua geração. Mas ela representava a síntese de uma geração iconoclasta, irreverente, criativa. Que resistiu ao banal e pela arte apontou para um novo porvir. Uma geração que pavimentou terreno para a minha e as gerações seguintes. Ilma Fontes foi o ícone feminino de uma época em que Aracaju era uma explosão de variados saberes e impactantes fazeres.

 (*) Luiz Eduardo Oliva é advogado, professor, poeta e membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas. Foi Secretário de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania.

Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Luiz Eduardo Oliva

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