Imagem extraída do site YouTube e postada pelo blog "SERGIPE, sua terra e sua gente",
para ilustrar o presente artigo.
Texto publicado originalmente no blog Koka Laranjeiras, em 21/06/2016.
João Sapateiro
Por: Luiz Antônio Barreto
Laranjeiras produziu, como útero cultural de Sergipe, uma
galeria de mulheres e homens que cobertos de glória deixaram seus nomes,
estandartizados na memória social daquela que já foi a Atenas Sergipense, e,
mais recentemente, Um museu a céu aberto. Assim como os nascidos em Simão Dias
são denominados Capa bode, os de Lagarto Papa Jaca, os de Porto da Folha
Buraqueiros, quem nasce em Laranjeiras carrega o “gentílico” de Caga Palácio.
Alguns dos mais consagrados vultos daquela terra nasceram em outros locais de
Sergipe, como é o caso da professora Quintina Diniz, que nasceu em Lagarto, e
de João Silva Franco, nascido em Riachuelo. No entanto, a professora e o poeta
foram legítimos laranjeirenses, na identidade com a terra e com o espírito
dominante no casario assobradado que simbolizou, no século XIX, a riqueza
açucareira de toda uma região banhada pelas águas do rio Cotinguiba.
João Silva Franco trabalhou duro para sobreviver. Negro,
quase dois metros de altura, teve a vida marcada pelo sobrenome postiço. Profissionalizou-se
como sapateiro, remendando o couro, trocando o salto, pondo meia sola nos
sapatos da população, independentemente do poder aquisitivo de cada pessoa.
Quem podia, é claro, comprava sapato novo, em Aracaju, ou em outra qualquer
cidade do País. Mas, quem tinha dinheiro curto, e queria fazer bonito na festa
de São Benedito, que é colada na festa de Santos Reis, encerrando o ciclo
natalino, entregava seu sapato velho a João Sapateiro, estabelecido nas
cercanias do Mercado Municipal. Discreto, mas de boa conversa, o sapateiro
exibia na sua oficina de trabalho, folhas de papel pautado, repletas de
palavras escritas em letras de forma, fixadas nas paredes e nos poucos móveis
do seu canto laboral. Eram trovas, pequenos e longos poemas, que surpreendiam a
freguesia. João Silva Franco passou a ser conhecido como João Sapateiro, e
reconhecido como o sapateiro poeta.
O pequeno espaço de trabalho de João sapateiro foi, em
Laranjeiras, um ponto de encontro, um daqueles lugares que reúne as pessoas
para uma conversa animada. Farmácia e barbearia, no interior, terminam sendo
locais atrativos, onde são formados grupos para as conversas, passando em
revista os assuntos dominantes da cidade. Em Laranjeiras o Cartório de Antonio
Gomes, a alfaitaria de Graquinho, e a oficina de João Silva Franco, ao lado da
farmácia de Antonio Rollemberg, se constituíram em locais especiais, que
assitiram a decadência econômica e cultural da cidade, sentindo o êxodo dos
mais novos, que saíam para estudar, e o
desaparecimento dos mais velhos, arrancados da vida. Quando morreu Bilina,
Laranjeiras chorou e o toque do Patrão da Taeira silenciou, até que Maria de
Lourdes, também já morta, foi buscar o ritmo, as cores e a coreografia para
continuar cantando: “Meu São Benedito, eu não quero mais c’roa, quero uma
toalha, enfeitada em Lisboa.” Quando morreu Alexandre, os fiéis do culto negro
tomaram nos braços o seu caixão e desfilaram pelas ruas laranjeirenses,
elevando e baixando a urna funerária, num gesto simbólico da religiosidade dos afrodescendentes.
João Silva Franco viveu quase 90 anos, antes de morrer,
placidamente, quinta-feira, dia 9 de setembro de 2008. Sua poesia, tal qual sua
arte de consertar sapatos, é um patrimônio de Laranjeiras, um rico exemplo de
criação, que nada fica devendo aos vates nascidos naqueles domínios, e que
encantaram auditórios, animaram reuniões, motivaram saraus, e deixaram que a
alma laranjeirense tocasse as palavras, dispondo-as com a beleza que é matéria
prima própria dos poetas. João Ribeiro, Bitencourt Sampaio, entre os mais
velhos, Edith Vinhas, entre os contemporâneos, foram artistas da lira,
reinventando paisagens e sonhos, para ornar de sutilezas a vida, sem sempre
bela, do cotidiano de uma cidade desigual.
João Silva Franco era um lírico, mas não cantava apenas o
amor. Suas trovas estavam afiadas como navalhas, cortando com cada verso o
tecido da realidade. Não calava diante das injustiças, mesmo quando a doçura de
seu jeito simples e bom acolhia a todos. Numa de suas quadras, publicada na
primeira antologia dos seus versos (Aracaju: Nova Editora de Sergipe, 1965),
João Sapateiro corrigia a admoestação de São Paulo, que na segunda Carta aos
Tessalonicenses exortava ao trabalho, como única forma de sobrevivência. O
poeta, tomado de justa ira, tingiu as linhas do papel pautado com letras grandes, todas maiúsculas letras de imprensa, que diziam:
“QUEM NÃO
TRABALHA NÃO COME
É CONVERSA
MUITO FALHA,
PORQUE SÓ
VEMOS COM FOME
O POVO QUE
MAIS TRABALHA.”
Ele mesmo, trabalhador e poeta, glória entre os simples, da
grande e rica Laranjeiras, fez do pé de cabra e do martelo, da faca afiada e do
couro, um ofício fino, para embelezar os pés dos seus contemporâneos, como fez
da palavra uma arma, manejada para criar beleza, com a coragem dos bons e dos
justos. Os sapatos, gastos, se perdem, mas a poesia continua servida, nos
livros que publicou.
Cântico
Aos Laranjeirenses
Minha terna
Laranjeiras,
Terra das lindas palmeiras,
Adoro tudo que é teu;
Admiro os belos prados,
E adoro os lindos trinados,
Das aves que Deus te deu.
O teu passado eu bendigo,
E adoro o “Bom gosto” amigo,
Aonde vou me banhar;
Adoro a meiga corrente
Que canta canção dolente
Andando em busca do mar.
Adoro a tua Matriz,
Aonde a velhinha feliz
Vai rezar o seu rosário;
Amo o teu belo Cruzeiro
Que lá no cimo do outeiro
Nos lembra o Monte Calvário.
Amo a tua marujada,
E adoro a Pedra Furada,
Que nos encanta e fascina!
Gosto da policromia
E da coreografia
Da Taieira de “Bilina”.
Amo os sinos maviosos
E os teus jardins olorosos
Que te dão tanta beleza!
Amo as igrejas dos montes,
Amo as tuas velhas pontes
Que fazem lembrar Veneza.
Admiro o candomblé,
E o zabumba do José,
Torrentes de poesia!
Amo a face angustiada,
Da imagem cobiçada
Do Senhor da Pedra Fria.
Admiro a Matriana,
Aonde em fins de semana
O povo vai repousar;
E adoro o Barro Vermelho,
Que fez do rio um espelho
Onde vive a se mirar.
Eu gosto dos Penitentes
Que contritos, reverentes,
Rezam por todos do além.
- E é com orgulho que
falo
Na dança de São Gonçalo,
Que nos encanta e faz bem.
Eu adoro as procissões
Que povos de outros rincões
Não deixam de acompanhar;
E os teus velórios cantados
Que nos deixam encantados
Esquecidos de chorar.
Amo ao Samba de Tropelo,
Coco, Forró e Martelo,
Bacamarte e Batalhão;
E as tuas garotas belas,
Cantando trovas singelas
Nas rodas de São João.
Amo a vista deslumbrante,
E a brisa acariciante
Do morro de Bom Jesus;
O Serra-Velho, dioso,
E o mês de doloroso,
Que aos namorados seduz.
Adoro o teu céu de anil,
Amo o teu povo gentil,
Amo tudo que é de ti;
Eu amo os tamarindeiros
Eu amo os velhos coqueiros
Onde canta o bem-te-vi.
Admiro os Caboclinhos,
E os Negros do Rei
Raminho,
Lamentando o cativeiro;
E a cantoria bonita
Da turma de João de Pita,
No dia seis de janeiro.
Adoro os velhos sobrados,
Aonde em tempos passados
Se cultivava o lirismo;
E os bancos da Conceição,
Onde sentou-se a paixão
No tempo do romantismo.
Adoro a rua Direita,
Porque quanto mais se ajeita,
Fica bem mais sinuosa;
E o Alto do Xavier
Que mostra pra quem quiser,
O quanto és
majestosa!
Minh’alma também é louca
Por ti, cidade barroca,
Residência do saber;
Terra de João Ribeiro,
Meu amor é verdadeiro,
E te adoro até morrer!
João Sapateiro.
Texto reproduzido do blog: kokalaranjeiras.blogspot.com.br
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