Publicado originalmente no blog de Samarone, em 24 de maio
de 2018
O Centenário de João Cardoso (1918 – 2018)
Por Antônio Samarone
Numa manhã chuvosa, lá para os idos de 1981, recém-chegado
da residência médica em Saúde Pública, (“sem parentes importantes e vindo do
interior”), bati na porta do velho reitor João Cardoso. Fui recebido num
pequeno apartamento, com fidalguia, generosidade e atenção, como se fosse um
velho amigo. Tinha sido apenas seu aluno. Contei os meus sonhos e dificuldades,
e ele me ouviu pacientemente. Em Aracaju há seis meses, morando de favor no
Leite Neto, eu precisava trabalhar. Ali eu entendi o que me contavam sobre ele,
um homem carinhoso com os angustiados.
Conheci o João Cardoso que na juventude tinha sido
simpatizante do Partido Comunista. Torcedor do América, no Rio de janeiro. Um
agnóstico convicto. Amigo íntimo dos arcebispos Dom José Vicente Távora e Dom
Hélder Câmara. João Cardoso foi exemplo de equilíbrio e conciliação. Pediatra,
especializado em puericultura, amigo irmão dos colegas José Machado de Souza e
Sílvio Santana. João Cardoso era desprovido de ambições materiais.
Fui seu aluno de Saúde Pública, onde ouvi pela primeira vez
um conceito abrangente de Saúde, e da sua relação com a economia. Ele pregava a
racionalização da atenção à saúde pela via do planejamento. “A demanda é
infinita e os recursos limitados. Administrar é definir prioridades”. Era essa
a sua lição de João Cardoso. Um professor de cultura enciclopédica. Um erudito
humilde. Em minha curiosidade juvenil, perguntei-lhe certa ocasião o que era
homeopatia. Ouvi quase uma conferência com resposta. Reconheço a sua influência
na escolha de minha especialização.
João Cardoso foi o primeiro reitor da UFS, entre 1968 e
1972. Logo após o AI -5 e o 477. Tempos sombrios. A pressão do comando militar
do Leste foi intensa, para que ele expulsasse os estudantes considerados
comunistas. E não eram poucos. Ele abriu a investigação e engavetou. Recebeu
pressão para prejudicar alguns professores, entre eles Luiz Rabelo Leite,
Gonçalo Rollemberg e Silvério Fontes, mas João Cardoso resistiu. Chegou a
enfartar, por conta das pressões, mas não cedeu. Na prática, merecia o título
de magnífico.
Entre os estudantes visados pelos militares citava-se João
Augusto Gama da Silva, Wellington da Mota Paixão, Benedito de Figueiredo,
Moacyr Soares da Mota, Abelardo Silva de Souza, Wellington Dantas Mangueira
Marques, Jackson Barreto, Jonas da Silva Amaral, Antonio Jacintho Filho e Francisco
Varela. Entre outros.
Nas comemorações de sete de setembro de 1970, no palanque do
desfile militar em Aracaju, o General Abdon Sena, comandante da 6ª Região
Militar, fez cobranças públicas ao reitor João Cardoso, chamando-o de ingênuo,
e exigindo providências contra os subversivos, que segundo ele, infestava a
universidade em Sergipe.
João Cardoso foi intimado a comparecer na Bahia, no prazo de
quinze dias, levando a comprovação do cumprimento das exigências militares,
para a expulsão dos subversivos. João decidiu que não se dobraria, marcou a
audiência para dizer não, e deixou instruções com o advogado da UFS, Stefânio
de Farias Alves: se até amanhã eu não entrar em contato, distribua uma nota com
a imprensa dizendo que o reitor de Sergipe está preso.
No final da gestão como reitor, pela firmeza, habilidade e
competência como exerceu a difícil missão, João Cardoso foi convidado pelo
Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, para continuar no cargo, por mais um
mandato. João Cardoso respondeu de pronto: - Ministro, não fica bem, nem para
mim nem para o senhor. E agradeceu!
Entrei na UFS em 1974, não alcancei João Cardoso como
reitor, mas recebi os cuidados de Antonia Edurvalina Nascimento. A assistente
social dona Durvalina, que cuidava dos meninos pobres das repúblicas
universitárias, nome pomposo para as casas que nos abrigava. Muitos conheceram
João Cardoso através de Durvalina, sua auxiliar por muitos anos.
Muitos estudantes carentes se tornaram professores de
biologia, física, química, matemática, por intermediação dela, no período que
João Cardoso foi Secretário de Educação do Estado, no Governo de Paulo Barreto.
Naquele tempo podia. Pela intervenção de Durvalina, eu me tornei professor do
Arquidiocesano, o que viabilizou a minha permanência no curso de medicina.
João Cardoso do Nascimento Junior era um humanista por
formação e caráter. Lembro-me que ele citava com frequência, em latim, uma
frase famosa de Publius Terentius, insígnia do humanismo: “Homo sum: nihil
humani a me alienum puto”. Por coincidência, frase também citada por Karl Marx
e Machado de Assis. João Cardoso, envelheceu e morreu entre os livros.
Texto e imagem reproduzidos do blogdesamarone.blogspot.com.br
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