Foto extraída do Google e postada no blog, para ilustrar o presente artigo.
Texto publicado originalmente no blog Luiz Eduardo Costa
O Arcebispo Luciano, o Homem, a Biblioteca
Por Luiz Eduardo Costa
Meados dos anos cinquenta, a Atalaia Nova, um povoado de casas de palha
de pescadores e de algumas de taipa e telha dos veranistas. Por lá, começou a
ir nos verões um jovem padre. Na casa do seu irmão Carlos Duarte, havia na
frente um areal branquinho. Ali ele armou uma rede e costumava jogar voleibol
com jovens veranistas.
Havia uma praça e, no centro, uma deteriorada capelinha. O jovem padre
tomou a iniciativa de ampliá-la. Conseguiu recursos e as obras andaram rápidas,
com ele sempre fiscalizando. No fim do verão, em fevereiro, houve a missa
inaugural. Um menino veranista andava apegado a um grosso livro de álgebra,
escrito pelo coronel professor Sinésio de Farias. Era preciso aproveitar a luz
do dia, não havia luz elétrica, mas a Petromax a querosene alumiava a sala,
onde o pai ficava a matraquear à noite toda uma Remington, e isso o
desconcentrava.
No fim
da tarde foi a igreja. Havia muita gente, e ele ficou sobre a calçada em frente
à porta principal, aliás, única. Nunca assistira aquele padre celebrar, mas a
homilia o encantou, ou melhor, o fez extasiar-se. O padre discorria, em tom
quase coloquial, sobre o que move uma coletividade e a semelhança desse
movimento com a fé. A união de todos resultara na construção daquela igreja,
fruto da solidariedade e da fé. Lembrava que das suas casas de palha e chão
batido de areia, as pessoas saíram para colocar a pedra, pavimentando o chão da
“casa de Deus” e pedia que esse ato de desprendimento se transformasse, também,
numa força coletiva para mudar a vida de todos, para que também pudessem um dia
pavimentar um chão e fazer paredes. Uma réstia clara de um sol encaminhando-se
ao poente, penetrou por uma das frestas do telhado e esbateu-se na testa larga
do padrezinho, esfogueado pela fé. E ele parecia envolvido de luz. Uma
senhorinha ao lado murmurou baixinho: “Tá vendo? É o Espírito Santo! Esse padre
vai ser um Papa”.
A
velhinha errou a profecia, mas acertou ao avaliar a grandeza, a força
transformadora, daquele padre, que não sentaria no Trono de São Pedro, mas
percorreu todos os caminhos possíveis do seu tempo, sendo um peregrino de
ideias, de ações, de mudanças, de evolução cultural, de aperfeiçoamento da
sociedade, que desejava justa, entendendo que a isso se chegaria pela fé, pela
razão, pelo conhecimento, jamais por revoluções.
O padre, o bispo, o arcebispo,
o intelecto mais potente e mais operoso do seu tempo, não atravessaria uma
época de conflitos e dissensos, sem deixar, bem nítidas, as suas convicções.
Isso o fez vítima de alguns equívocos, desses inevitáveis, quando se esfarelam
os laços que harmonizam a convivência. Mas, em 64, o então Bispo Auxiliar de
Aracaju foi ao quartel do 28º BC, onde estavam, infelizmente, e para nunca
mais, encarceradas pessoas, estudantes na maioria, pelo crime de pensar.
Celebrou uma missa, onde falou sobre ideias e o trânsito delas através da
história, e sobre a solidariedade que deriva do sentimento cristão. O implícito
significado daquela missa não chegou a ser devidamente avaliado.
O
conservador corria na frente do seu tempo. Fez isso, quando criou a PROCHASE,
início da reforma agrária em Sergipe. Fez isso, quando na JUC, Juventude
Universitária Católica, evangelizava e formava pessoas dignas para exercerem
seu papel na sociedade. Em duas pessoas, a professora Carmelita Pinto Fontes e
no conselheiro Juarez Alves Costa, caracterizamos a dimensão humana de todos os
que passaram pela JUC.
Fez
isso, também, quando, numa atitude invulgar, rompeu a barreira de preconceitos
e desinformação que separava a Igreja Católica da Maçonaria, visitando a Loja
Simbólica Cotinguiba e fazendo um histórico discurso. Era venerável da
Cotinguiba Carlos Teles Sattler. Ali, nasceu uma parceria e um convênio entre a
Arquidiocese e a Loja Cotinguiba, para a implantação do primeiro projeto de
reforma agrária em Sergipe. O advogado e líder maçônico José Francisco da Rocha
deu forma jurídica ao acordo e à PROCHASE e lembra sempre, com muita emoção, da
presença e da força de Dom Luciano.
Muitos anos depois, o menino que assistiu a missa na igrejinha da
Atalaia, estava no Instituto Luciano Duarte, para, de Carminha Duarte, guardiã
do acervo cultural do irmão Arcebispo, a quem sempre carinhosamente chamava de
padre, receber a tarefa que consistia na seleção de livros da imensa
biblioteca, para doá-los à diferentes instituições.
Na
biblioteca, na coleção de músicas, nos objetos e fotografias recordações de
tantas viagens, havia a síntese do homem, do religioso, do intelectual
sobretudo. Da Suma Teológica ao O Capital, de Lutero a Trotski, de Sartre a
Bernanos, de Teillhard de Chardin ao Aiatolá Khomeini, lá, em diversas línguas,
estava, na sua variedade e na sua abrangência, a parte do conhecimento, do
existir humano, pelos quais transitara o privilegiado cérebro do padre, que, na
igrejinha da Atalaia Nova, estava envolvido em luz. E ele foi uma luz da razão,
que agora perdemos.
Texto reproduzido do blogluizeduardocosta.com.br
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