sábado, 2 de junho de 2018

O Arcebispo Luciano, o Homem, a Biblioteca

Foto extraída do Google e postada no blog, para ilustrar o presente artigo.

Texto publicado originalmente no blog Luiz Eduardo Costa

O Arcebispo Luciano, o Homem, a Biblioteca 

Por Luiz Eduardo Costa

                  Meados dos anos cinquenta, a Atalaia Nova, um povoado de casas de palha de pescadores e de algumas de taipa e telha dos veranistas. Por lá, começou a ir nos verões um jovem padre. Na casa do seu irmão Carlos Duarte, havia na frente um areal branquinho. Ali ele armou uma rede e costumava jogar voleibol com jovens veranistas.

                  Havia uma praça e, no centro, uma deteriorada capelinha. O jovem padre tomou a iniciativa de ampliá-la. Conseguiu recursos e as obras andaram rápidas, com ele sempre fiscalizando. No fim do verão, em fevereiro, houve a missa inaugural. Um menino veranista andava apegado a um grosso livro de álgebra, escrito pelo coronel professor Sinésio de Farias. Era preciso aproveitar a luz do dia, não havia luz elétrica, mas a Petromax a querosene alumiava a sala, onde o pai ficava a matraquear à noite toda uma Remington, e isso o desconcentrava.

                No fim da tarde foi a igreja. Havia muita gente, e ele ficou sobre a calçada em frente à porta principal, aliás, única. Nunca assistira aquele padre celebrar, mas a homilia o encantou, ou melhor, o fez extasiar-se. O padre discorria, em tom quase coloquial, sobre o que move uma coletividade e a semelhança desse movimento com a fé. A união de todos resultara na construção daquela igreja, fruto da solidariedade e da fé. Lembrava que das suas casas de palha e chão batido de areia, as pessoas saíram para colocar a pedra, pavimentando o chão da “casa de Deus” e pedia que esse ato de desprendimento se transformasse, também, numa força coletiva para mudar a vida de todos, para que também pudessem um dia pavimentar um chão e fazer paredes. Uma réstia clara de um sol encaminhando-se ao poente, penetrou por uma das frestas do telhado e esbateu-se na testa larga do padrezinho, esfogueado pela fé. E ele parecia envolvido de luz. Uma senhorinha ao lado murmurou baixinho: “Tá vendo? É o Espírito Santo! Esse padre vai ser um Papa”.

             A velhinha errou a profecia, mas acertou ao avaliar a grandeza, a força transformadora, daquele padre, que não sentaria no Trono de São Pedro, mas percorreu todos os caminhos possíveis do seu tempo, sendo um peregrino de ideias, de ações, de mudanças, de evolução cultural, de aperfeiçoamento da sociedade, que desejava justa, entendendo que a isso se chegaria pela fé, pela razão, pelo conhecimento, jamais por revoluções.

                 O padre, o bispo, o arcebispo, o intelecto mais potente e mais operoso do seu tempo, não atravessaria uma época de conflitos e dissensos, sem deixar, bem nítidas, as suas convicções. Isso o fez vítima de alguns equívocos, desses inevitáveis, quando se esfarelam os laços que harmonizam a convivência. Mas, em 64, o então Bispo Auxiliar de Aracaju foi ao quartel do 28º BC, onde estavam, infelizmente, e para nunca mais, encarceradas pessoas, estudantes na maioria, pelo crime de pensar. Celebrou uma missa, onde falou sobre ideias e o trânsito delas através da história, e sobre a solidariedade que deriva do sentimento cristão. O implícito significado daquela missa não chegou a ser devidamente avaliado.

              O conservador corria na frente do seu tempo. Fez isso, quando criou a PROCHASE, início da reforma agrária em Sergipe. Fez isso, quando na JUC, Juventude Universitária Católica, evangelizava e formava pessoas dignas para exercerem seu papel na sociedade. Em duas pessoas, a professora Carmelita Pinto Fontes e no conselheiro Juarez Alves Costa, caracterizamos a dimensão humana de todos os que passaram pela JUC.

                Fez isso, também, quando, numa atitude invulgar, rompeu a barreira de preconceitos e desinformação que separava a Igreja Católica da Maçonaria, visitando a Loja Simbólica Cotinguiba e fazendo um histórico discurso. Era venerável da Cotinguiba Carlos Teles Sattler. Ali, nasceu uma parceria e um convênio entre a Arquidiocese e a Loja Cotinguiba, para a implantação do primeiro projeto de reforma agrária em Sergipe. O advogado e líder maçônico José Francisco da Rocha deu forma jurídica ao acordo e à PROCHASE e lembra sempre, com muita emoção, da presença e da força de Dom Luciano.

                   Muitos anos depois, o menino que assistiu a missa na igrejinha da Atalaia, estava no Instituto Luciano Duarte, para, de Carminha Duarte, guardiã do acervo cultural do irmão Arcebispo, a quem sempre carinhosamente chamava de padre, receber a tarefa que consistia na seleção de livros da imensa biblioteca, para doá-los à diferentes instituições.

              Na biblioteca, na coleção de músicas, nos objetos e fotografias recordações de tantas viagens, havia a síntese do homem, do religioso, do intelectual sobretudo. Da Suma Teológica ao O Capital, de Lutero a Trotski, de Sartre a Bernanos, de Teillhard de Chardin ao Aiatolá Khomeini, lá, em diversas línguas, estava, na sua variedade e na sua abrangência, a parte do conhecimento, do existir humano, pelos quais transitara o privilegiado cérebro do padre, que, na igrejinha da Atalaia Nova, estava envolvido em luz. E ele foi uma luz da razão, que agora perdemos.

Texto reproduzido do blogluizeduardocosta.com.br

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