sábado, 26 de agosto de 2017

Réquiem para Dr. José Augusto Barreto

Foto: César de Oliveira.
Publicada pelo blog SERGIPE..., para ilustrar o presente artigo.

Publicado originalmente no Portal Infonet, em 24/08/2017.

Réquiem para Dr. José Augusto Barreto.

Uma louvação à obra e a seu criador.

Por Odilon Cabral Machado.

Com o título “Tudo começou pelo coração”, o Hospital São Lucas fez publicar em 2009 um livro memorial dos seus quarenta anos de existência.

O livro, com pesquisa e texto do intelectual Luiz Antônio Barreto, por sua feitura, concepção, gravura e documentação, é uma contribuição destacada à historiografia sergipana.

Luiz Antônio especializara-se em divulgar e pesquisar as coisas e os homens de Sergipe, procurando semear nas nossas terras áridas o sentimento de sergipanidade que permeia o nosso viver.

Agora, revejo aquele feito notável com o falecimento do médico cardiologista José Augusto Barreto, uma das maiores expressões da medicina sergipana, cuja memória permanecerá como suave saudade, inerente à vida de nossa cidade.

Tudo realmente começou com o coração, como diz aquele livro de Luiz Antônio Barreto, mote de um artigo meu, exibido neste blog em 04/11/2009, de que me sirvo agora por ocasião da inumação deste grande médico.

No início, dizia eu, era uma clínica apenas: “Clínica São Lucas”.

Uma homenagem a Lucas, o apóstolo de Jesus que era médico também, e que se destacaria, sobretudo por curar almas; os doentes do espírito.

Lucas é o evangelista de texto delicado e amoroso, sobretudo com Maria.

É ele que, em palavras terminais do crucificado, fala em perdão, porque nunca sabemos o que fazemos nas nossas imperfeições tão gritantes.

É Lucas, o médico que ouve e proclama uma fraternidade só possível por expressão livre de vontade.

Se é a partir de João que somos irmãos do Cristo, por filhos de Maria, em Lucas temos uma mensagem maior em ternura à mãe comum, inclusive no perdão aos pecadores.

Não estaria aí inserida a ternura do médico, ciente de que possuímos, sem exceção, as mesmas carências diante da dor e do sofrimento, e por isso estamos a necessitar, tanto da cura dos males imateriais quanto daqueles corpóreos, numa carência espiritual bem maior do que física?

Talvez, por ser assim, tudo tenha começado com o coração.

O médico, Dr. José Augusto Barreto se especializara no estudo desta bomba compassiva e compassada, que não pensa, mas que sem pensar, pensa tudo.

Porque o coração sem razão ou com ela, possui razão que a própria razão desconhece.

Pelo menos era assim que pensava Blaise Pascal (“Le coeur a ses raisons que la raison ne connaît point”), para explicar a empatia e os gostos dos homens.

Um brocardo hoje desgastado, que perdeu o seu vigor e grandeza, porque a modernidade revelou que o coração era apenas um músculo; um conjunto de fibras e ligamentos, uma bomba acionada por impulsos elétricos, ditados pelo cérebro, este sim!, o grande pensador cartesiano, o detentor da razão. E até da falta dela!; delimitador da irracionalidade da besta perante a superioridade do homem!

Revelação que até os gostos e os desgostos dos homens passaram a ser explicados por tudo, e até por reação de epiderme, o que é complicado!, ensejando pruridos de desconfortos, ou atrativos de sedução.

Algo tão inerente aos gostos e gozos do ser, que vale até na música e no verso, um corintiano perder por reverso um sofrido coração corintiano, recebendo, por implante ou desplante, um novo coração; corintiano.

Mas, se a compaixão não provém mais do coração, o que dizer da manifestada emoção que o acelera ou retarda, num ritmo sem razão ou sem-razão?

Porque a razão é uma expressão matemática, um quociente entre números inteiros, uma relação causa efeito de simplicidade inserida nos assim chamados números racionais, e estendida ao pensamento.

Ela, a razão, tão previsível e sem surpresas, pressuporia oscilações ou arritmias nas batidas do coração?

E assim em resistência, os homens justificam seus atos, desejos e vontades em função do bom ou mau coração, quando aí não se está falando de cardiopatias, arritmias ou mau funcionamento de válvulas e artérias.

Mas, independente do homem de bom ou mau viver, a missão da Clínica São Lucas imaginada por Dr. José Augusto era prevenir obstruções arteriais, pacificar o descompasso cardíaco, prevenir a dor letal, do bom e do mau coração.

Porque esta é uma tarefa sacerdócio do médico.

Porque a dor e o sofrimento constituem característica do viver.

E é missão do médico lutar contra a agonia e a aflição.

Afinal tudo começa com o coração, como fonte de compaixão e solidariedade. Uma tarefa sacerdócio, exclusiva dos discípulos de Hipócrates, por escolha e desejo.

Por entender assim, ousou Dr. José Augusto Barreto erigir sua clínica, com Lucas tomado como patrono, e seguindo Hipócrates por lema e rumo.

Se Hipócrates representa a assepsia médica, a proficiência, a necessária isenção para poder adentrar nas angústias e fraquezas do ser adoecido e vulnerável, eximindo-se de louros e vantagens, Lucas insere doçura e carinho no tratamento médico.

Assim, sem se desviar do norte hipocrático, nem se arrefecer na compaixão Lucana, eis Dr. José Augusto Barreto merecedor de todos os elogios como notável médico sergipano.

Um médico que ousou sonhar e tornar realidade um hospital moderno em terras tão inóspitas dos apicuns e alagados de Aracaju, justamente nos idos sombrios de 1969.

Um tempo em que a cidade praticamente acabava no fundo da Igreja São José e crescer significava conquistar terras insalubres e lodosas.

Se os historiadores só veem trevas nos idos de 1969, vivíamos então uma época de grandes mudanças.

Naqueles “terríveis tempos sombrios”, Sergipe estava a desfrutar de um notável surto de desenvolvimento.

A criação da Universidade Federal de Sergipe, a descoberta e prospecção do petróleo, a industrialização dos sais evaporitos, a construção do porto, as edificações do complexo amônia-ureia constituíam uma série de investimentos públicos e privados no assim chamado milagre brasileiro, em sua vertente sergipana.

Tempos execrados, por “terríveis”, no vesgo olhar dos que contorcionam a história segundo seu trêfego olhar.

Nunca se vira tanto investimento em terra Serigy, nem mais se veria por aqui.

Mas, a despeito de tantos investimentos realizados, havia uma carência significativa de leitos hospitalares, mesmo porque os antigos Hospitais Santa Isabel, Augusto Leite e São José não conseguiam suprir toda a necessidade de um atendimento moderno, sempre carente de verbas e subvenções públicas.

Havia a necessidade de um hospital particular, um nosocômio que conjugasse a eficiência empresarial com a prestação de serviço eficaz.

Homem progressista e realizador, Dr. José Augusto via que a necessidade justificava o investimento.

Tentou no início um condomínio, uma associação de médicos.

A tentativa não foi adiante. Restou a mera compra de um terreno; um chão miasmático e lodoso a necessitar de terraplenagem e aterros. Um desafio aos conservacionistas e àqueles que veem com suspeita os investimentos privados.

Por outro lado, por desterro e mor sofrimento, naquele tempo não existiam os atuais planos de saúde, democratizando e viabilizando o atendimento médico.

Naquele tempo, o doente quando não era segurado dos diversos institutos, era indigente, carente de tudo, ou tinha que bancar por um serviço melhor qualificado em outras plagas.

Com a chegada da Clínica São Lucas tudo ali começou a mudar; não há alagados, nem miasmas, nem terras insalubres.

Também não há mais a clínica da Rua Stanley Silveira de aparência tranquila e tosca, o germe cristalino inicial.

O Hospital São Lucas substituiu o consultório inicial com ampliação física e acréscimo de serviços. Ocupou todo o trecho fronteando a lateral da igreja São José que do outro lado continuou quase igual.

Se a igreja pouco mudou, ela passou a viver uma espécie de continuidade do hospital, recebendo as preces dos doentes e de seus familiares.

E o complexo hospitalar não para; assumiu outras áreas, ocupando agora o outro trecho.

Viria logo uma passarela para bem melhor servir o usuário da medicina, unido o que não devia estar separado.

Da clínica e do consultório surgiu o hospital. Agora há a Fundação São Lucas, o Centro de Hemodiálise, o Centro de Estudos Técnicos e Profissionalizantes, a Creche Dom Luís Mousinho.

São milhares de servidores e colaboradores! Fala a realidade atual, evidenciando que um maior número ali atuou nos seus quase cinquenta anos de portas sempre abertas.

Quantos médicos, enfermeiros, funcionários, humildes ou qualificados fizeram vibrar aquelas paredes silenciosas e convidativas para o repouso e a cura!?

Quantos doentes frequentaram seus tálamos resgatando forças e sanidade!?

Quantos conseguiram ter minoradas suas dores e sofrimentos!?

Quantos ali morreram nos seus leitos confortados, porque por suprema missão do médico, cabe-lhe também mitigar o último conforto, contemplando a inexorabilidade da parca no encontro jamais ausente!?

Quem não tem algo a lembrar de passagem e permanência sobre os cuidados de Dr. José Augusto e seus liderados neste Hospital que tem sido uma casa de carinhos!?
  
Realmente, tudo começou pelo coração; um estetoscópio, um tensiômetro, um instrumental tosco, uma ideia vigorosa, uma vontade tenaz, uma luta persistente e continuada, um passo mantido numa longa caminhada.

Mas, se o Hospital São Lucas representa vida em nossa terra, dê-se ao seu fundador o maior mérito.

Era ele que em passeio diário por seus corredores dava uma aura de correção, limpeza e eficiência, mostrando na alvura da veste que exibia, a irrepreensibilidade dos que passam pela vida servindo à sua vizinhança, dando-lhe dignidade e esperança.

Por isso vale ressaltar tudo isso em sua despedida do nosso convívio.

Que seja homenageado e louvado o nome do Dr. José Augusto Barreto, o médico que nos deixa uma saudade imensa, merecedor das nossas preces de carinho e agradecimento pelo seu existir.

E nessa oração sejam contemplados todos os que fazem o Hospital São Lucas nas pessoas de seus familiares, Dona Conceição, filhos, netos e bisnetos e ao Dr. Dietich Todt, seu auxiliar e co-fundador.

Sejam louvadas as duas irmãs amigas, Dona Conceição e Dona Nicinha cujas vidas de tão inseridas na missão de cura dos esposos, estão presentes em cada local do hospital como se fora o próprio lar, a sua seara por missão.

Aos filhos que continuam o trabalho de criação nestes quase cinquenta anos passados. Enfim, vida que se prolonga além da vida em lembranças e saudades a merecer nosso carinho e aplauso.

Se tudo nasceu com o coração, e de Pascal se atribui ter o coração razão que a própria razão desconhece, usemos também de Pascal um aforismo por final:

"O prazer dos grandes homens consiste em tornar os outros mais felizes."

O médico José Augusto Barreto e o Hospital São Lucas contribuem com a felicidade sergipana.

Que Deus abençoe a grande alma do Dr. José Augusto Barreto.

Texto reproduzido do site: infonet.com.br/blogs/odilonmachado

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