sábado, 17 de junho de 2017

Meu amigo Marques, por Odilon Cabral Machado

Marques cortando o cabelo de Vinicius, filho de Machado.
Terceira geração de clientes na minha família.

Publicado originalmente no Portal Infonet, em 15/06/2017.

Meu amigo Marques.

Os sinos não mais ressoam, é verdade!

Por Odilon Cabral Machado.


...”a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte da humanidade; e por isso, nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por você”.
(DONNE, John, Meditação VII)

O trecho acima, pertencente ao poeta e pregador inglês John Donne, talvez não fosse tão conhecido e repetido não estivesse destacado no celebrado livro de Ernest Hemingway, “Por quem os sinos dobram”.

Ao citar John Donne, Hemingway convida o leitor a refletir sobre a fugacidade da vida, em tantos desafios, alegrias e frustrações:

Ele próprio vivera suas angústias entremeadas de sucesso, reconhecimento público, coisas que considerava vazias e sem muito sentido perante a memória que nunca o esqueceria.

A angústia de viver o levaria a cometer o mesmo gesto terrível de seu pai, se suicidando com uma arma de fogo.

Mas, se em “Por quem os sinos dobram” a temática refletia o idealismo revolucionário dos combatentes espanhóis frente às forças falangistas reacionárias, a frase bem cabia a título reflexivo do autor dialogando com o leitor, afinal: “Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti".

Se “a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano”, uma inexorável constatação da individual circunstância de cada um, sem excessos de ideal sentimento, lamento muito mais quando a morte nos alcança em proximidade.

Uma realidade tão comum que rotineiramente é repetido o dito egoísta do simples cidadão, que na sua menor expressão repete sem culpa nem contrição: “Defunto que não conheço, nem rezo, nem ofereço”.

Dentro desta linha que o sofrimento dos próximos nos atinge sobremodo, e longe de dissertar as agonias do ser humano em sua ampla generalidade, pretendo falar de Marques, um homem simples, um alagoano de Arapiraca, salvo engano, alguém que atravessou no meu caminho, restando um amigo, um freguês de décadas no corte de cabelos.

A história é antiga: Começou cerca de trinta anos pelo menos. Nesse tempo já sou pai de uma menina, Daniela, e dois garotos; Machado e Junior, hoje adultos.

Entre as coisas que relembro com muita saudade era o dia em que saímos os três para cortar os cabelos.

Alguém nos disse então, penso que foi Machado, que um moderno salão de corte e cabelos havia se instalado na Rua de Laranjeiras. Chamava-se “O Navalhão”, uma novidade para mim.

Eu que conhecera diversos cabeleireiros desde o tempo em que “Manoelzinho Caranguejo”, um capelense avermelhado e de olhos azuis, que cortava meus cachos à moda aplicada nas forças armadas americanas, ou do nosso Exército mesmo.

Eu não gostava de sentar na cadeira do barbeiro porque o corte era feito com máquina manual muitas vezes cega ou pouco amolada, dando uns beliscões dolorosos.

Afora isso, naquele tempo havia um corte à “Príncipe Danilo”, que deixava os meninos meio ridículos com um penacho na resta e o restante do coco raspado, o que talvez fosse uma delícia em termos de adiamento de novos cortes para economia dos pais.

Que eu lembre, nunca exibi corte de cabelos à “Príncipe Danilo”, moda que se seguiu ao sucesso do musical “A viúva alegre”, estreado no cinema com Jeanette MacDonald e Maurice Chevalier.

Poderia falar muitas coisas de barbearia. Diria, por exemplo, que ali sempre existiam meninos com conhecimentos notáveis no Jogo de Damas.

Eu tinha uma raiva danada por não conseguir jogar bem nas pedras de Damas.

Aliás, todas as pedras, xadrez, gamão, voleibol e basquete que se joga “ca mão”, e futebol, que se joga “cos péis”. Graças a Deus, restei mal de esporte.

Só fui bom de bicicleta, vagueando Aracaju inteira, indo para o que devia e indo também para onde não devia, subindo e descendo a Rua de Laranjeiras, ou ladeira difícil, do Siqueira para a Rua da Frente, num tempo em que ali se podia ir e voltar.

Mas, estava eu a falar que já adulto, bem casado e pai, acostumei-me entre outras coisas partilhar com meus filhos momentos rotineiros que me trazem uma saudade imensa.

Um destes foi quando fomos pela primeira vez no “Navalhão”.

Tereza nos deixara de automóvel na esquina confluente entre os Correios, as antigas Padarias Ceres e Central e o Edifício Aliança, onde ficava o Consultório Dentário do Dr. João Garcez, de quem eu era cliente, admirador e amigo, cujo motor era terrível.

Recentemente, eu recebi via WhatsApp um texto enaltecendo os tempos antigos. Era um saudosista à moda antiga, no fundo, no fundo, lamentando a tezão perdida.

Não é o meu caso. Quem quiser que elogie o passado. Eu prefiro a modernidade, sobretudo a criativa, aquela que não se incomoda em nos sepultar, com inexorabilidade do viver.

Mas, quero voltar à minha chegada no “Navalhão”, salão, que penso eu, se existe não mais é o que foi.

De Fernando Pessoa, o grande poeta do idioma, é notável o teorema: “O que foi não é nada e lembrar é não ver”.

Mas, afastado da Matemática, eu quero não contraditar o teorema. Eu quero insistir em ver, aquilo que restou um rastro de um animal que passou somente e não voou como as aves fazem, sem deixar rastro, como devia todo mundo ser; você, eu e Marques, que se foi voando alto, mas deixando rastro.

Chegamos os três no “Navalhão”; Junior, Machado e eu. O salão estava vazio. Que delícia! Era início do expediente. Várias cadeiras a escolher.

Quem? Não conhecíamos ninguém, mas havia uma novidade: o nome do profissional, estampado bem à frente da cadeira e acima do espelho.

Junior ficou com Kiko, um cabeludo à moda “jovem guarda”, aportado dos Andes, Bolívia, Peru ou Equador.

Marques cortando o cabelo de Vinicius, filho de Machado. Terceira geração de clientes na minha família.

Machado escolheu Marques, um longilíneo alagoano e eu fiquei com Pereira, um alourado de voz macia e olhos azulados, cujo cabelo bem penteado me revelou zelo pela estética da cabeleira.

Deste primeiro encontro muitos outros venceram anos em repetição mensal. Sempre o mesmo ritual. Tereza nos deixava na esquina das padarias citadas e seguíamos para as nossas respectivas cadeiras; Kiko, Marques e Pereira.

Depois do corte dos cachos íamos fazer um lanche nas Lojas Brasileiras. Comprávamos um presente para Tereza, isso por ideia de Junior, que tinha essa lembrança sempre.

Depois voltávamos andando ao encontro de Tereza e Daniela que nos esperavam na casa da mãe e avó, Dona Julia, que morava na Rua de Estância, esquina com Arauá.

Com o tempo isto ficou tão querido, que os anos se passaram e meus filhos permaneceram na mesma escolha de cabeleireiros

O tempo nos afasta aposentando os hábitos. Já vai distante o tempo em que eu sai com meus filhos para um lanche depois de uma visita a uma barbearia.

Eu não me lembro do último dia em que lhes paguei o corte dos cabelos.

Dos cabeleireiros sei apenas que Kiko retornou ao seu país. Alguém me disse que tinha falecido.

Pereira, o mais velho, não mais corta os meus cabelos.

Dei preferência por Marques, mais solícito, em horário e atenção, seguindo-o nos diversos locais da cidade onde exercia o seu ofício.

Nos últimos tempos atuava no Shopping RioMar. Ali me contou algumas coisas de sua vida.

Uma delas se referia a uma moléstia do coração. Estava resistindo a implantar um desfibrilador cardíaco. Estava indócil, impaciente, não queria implantar o aparelho. Incomodava-se com a necessidade de virar “um homem biônico”, com o implante de uma geringonça a chicotear o coração.

Lembro que o aconselhei a se submeter à cirurgia, algo que estava bem preocupando os colegas que constatavam a sua fragilidade a despeito do espírito forte que o animava.

Um dia soube que a cirurgia fora executada com êxito.

Voltou a ser o Marques de antes; alegre, disposto, comunicativo.

Se o cliente sempre é um confidente de seu cabeleireiro, Marques me contou um fato que bem revela seu espírito arrebatado e ao mesmo tempo terno.

Marques foi condenado num processo de agressão.

O agredido, alguém que a sociedade estimula a título de vadiagem e mendicância. Um destes comuns parasitas que se reproduzem como vírus nos nossos semáforos. Aquilo que a sociedade agrada como “flanelinhas”.

Marques, como muitos iguais a mim, detesta os tais “flanelinhas”.

Infelizmente, como praga maior deste país, uma minoria resolve estimulá-los, destinando-lhes as moedas e até as cédulas que lhes sobram em desapreço.

Quer essa minoria contaminar a maioria. Acham que o problema do país será resolvido com a dilapidação do mal recebido

E assim permanecemos. Não gostamos de nossa moeda. Detestamos, seja ela Reis, Cruzeiros, Cruzados, Velhos ou Novos, Reais, os zeros sendo cinicamente cupinizados e erodidos.

Enquanto nos Estados Unidos, Inglaterra e Europa, um centavo vale e faz falta, isso por décadas, aqui o troco falta, a moeda se deprecia bem rápido; arredonda-se tudo e vira esmola, estimulando-se a mendicância e a vagabundagem, destino dos “flanelinhas”, atuais pragas nossas, exclusivas como povo.

Pois bem: Marques se desentendeu com um destes flanelinhas.

O carro estava lavado, mas o “flanelinha” entendeu que precisava de uma escovada, terminando por lhe quebrar o limpador do para-brisa.

Sucedeu uma discussão e uma denúncia de agressão.

Como é comum neste caso o marginal foi considerado ofendido e hipossuficiente, esta palavra mágica que vale para amparar um vadio perante alguém que conseguiu se endividar na compra de um fusquinha “seminovo”.

O resultado é que Marques foi condenado, restando feliz porque não foi para a cadeia nem que fosse extorquido como bem o queria a defensoria da parte ofendida.

Marques foi então condenado a realizar serviços comunitários num asilo de anciões.

Ali fez amizade com os velhinhos. Aparava-lhes os cabelos. Fazia-se uma alegria no asilo.

Disse-me ele um dia, que não só cumpriu a sua punição como continuou sempre dando um dia de corte de cabelos aos velhinhos.

Na última sexta-feira fui ao Shopping e procurei por Marques para cortar minhas madeixas. Não o encontrei.

Machado, seu cliente mais antigo, deu-me o seu telefone. Soube que iria trabalhar em outro local.

Mandei-lhe um recado perguntando o seu novo local de trabalho.

Recebo sua mensagem de voz me informando que estava passando mal, achava que algo o tinha atingido; uma Dengue ou Chicungunya.

No outro dia Marques estava morto. O coração lhe parava passos e desejos. Foi assim que me falou o filho Yago.
  
Diante da morte próxima volto-me para John Donne e aos sinos que não dobram mais, porque o seu retinir restou fora de moda.

Eles não mais ressoam, é verdade!

Mas continuam a ressoar também por mim que estou a me sentir menor com a partida de Marques, um homem simples, o amigo que me aparava os cabelos.

Texto e imagem reproduzidos do site: infonet.com.br/blogs/odilonmachado

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